Lisboa – Portugal, 05 de Janeiro de 2017
Hoje fomos ao museu da Fundação Calouste Gulbenkian, que é formado por uma coleção privada de peças dispostas em um percurso histórico que vai da antiguidade egípcia e assíria até o século XIX. Em termos de quantidade de peças expostas o peso maior fica com a chamada “arte oriental”, com uma certa ênfase em louças, tapeçarias e tapetes. Algo que entediou bastante Uriel e Sarah. Além de mim, Helena e Ana eram as únicas, que pareciam bem interessadas no acervo. Apesar disso o ponto alto do lugar, ao menos a meu juízo, era mesmo a coleção de pinturas.
Pelos corredores iluminados fomos sendo guiados por uma sequência de quadros antigos e de velhos manuscritos que nos levaram da Idade Média tardia até às vésperas da revolução francesa. Infelizmente soubemos, durante o percurso, que as obras de arte do século XIX e XX estavam em um pavilhão interditado para reforma. Andando lentamente por aqueles corredores foi possível visualizar claramente a transição entre estilos, saindo da plástica anacrônica do medievo tardio, representando a cena da ascensão de Jesus como se ela estivesse acontecendo em um jardim italiano dos 1300 até chegarmos na luminosidade dourada da pintura Rococó.
Uma coisa que me deixou bem impressionado foi a nítida distinção da postura e das roupas dos europeus do século XVIII quando comparadas a de seus antepassados do século XVII. Em cem anos o povo do velho mundo transitou do peso das roupas negras e das posições sóbrias e recatadas, para roupas coloridas, espalhafatosas, carnavalescas e chamativas, com perucas desproporcionalmente grandes e babados escorrendo pelas mangas das camisas. As posições dos europeus do século das luzes também soavam bem mais descontraídas do que a dos seus antepassados da época da guerra dos trinta anos, que pareciam carregar nas costas a sombra da contra reforma, do terror religioso, das perseguições sectárias e da excomunhão de gente como Spinoza e Hugo Grotius.
Olhando aquelas pinturas me senti um habbermasiano safado, desses que acredita no discurso público, na razão universal e na moralidade burguesa. O século XVIII, ao menos nas pinturas da fundação Calouste Gulbenkian, parecia mesmo ter arejado o mundo com luzes de esperança e modernidade, mesmo que, no meio do caminho entre um século e outro, pelos corredores da galeria, a gente se depare com uns dois “rubens” e uns três “rembrants” para nos lembrar que as sombras também são crias da luz.
O quadro de Palas Atena, por exemplo, é tão discrepante de todas as outras obras expostas, com sua intensidade de contrastes entre luz e sombra, anunciando sem titubear que o barroco havia chegado, que me pareceu desconcertantemente simples, quando se olha a arte com o olhar aberto ao espantoso, perceber quando se está diante de um gênio. O difícil parece ser abrir o olhar para a arte entrar, talvez por isso muita gente patine tanto diante de suas misérias miúdas, girando como um peão ao redor do próprio umbigo.
Isso se tornou particularmente evidente para mim quando à noite, após a visita ao museu, nos encontramos com um casal de conhecidos brasileiros que migraram faz um ano aqui para Portugal. Eles são do Sudeste (não sei se paulistas ou cariocas), mas moraram em Natal por dez anos e tiveram dois filhos por lá (um deles foi colega de Sarah no colégio). Com a crise econômica e a quebradeira das empresas que prestavam serviço à Petrobras no esteio da euforia lavajatista, o marido, que é engenheiro e era dono de uma empresa que prestava serviço de mergulho para a supervisão de plataformas de petróleo, acabou falindo e a família resolveu mudar para Portugal. Hoje o marido trabalha de Uber e a esposa é dona de casa aqui no “jardim” europeu.
Nos encontramos em um espaço bem acolhedor perto do largo do Chiado, um local chamado Fábulas, que tem um ar de taverna medieval hipster do tipo que agradaria jogadores de RPG ou fãs de “O Senhor dos Anéis”. O casal mora em Estoril, perto da praia, e teve muita dificuldade para arrumar escola pros filhos. Isso porque não tinham dinheiro para custear um ensino privado e, pelas regras da escola pública, não poderiam escolher em qual colégio as crianças iriam estudar. Os dois garotos acabaram sendo matriculados em uma escola situada em um “bairro social” cheio de ciganos, cabo verdeanos e africanos das antigas colônias portuguesas. No início a mãe, acostumada a matricular os filhos nas melhores escolas privadas de Natal, chorou, imaginando quem seriam os colegas com quem seus filhos iriam conviver durante as aulas. Depois confessou que se sentiu até aliviada, posto que os garotos não iriam, ao menos, sofrer preconceito por parte dos portugueses.
Essa parece ser uma das primeiras lições que a classe média brasileira precisa aprender aqui na terrinha: em Portugal, nós somos os outros.
Mas qual “outro” somos nós?
Ontem tive algumas intuições sobre isso.
Pensando em um programa que agradasse as crianças pegamos o metrô para a estação oriente, que nos levou direto à “parte moderna” de Lisboa. Um espaço construído para a expo 98.
Grandes arranha-céus de vidro espelhado às margens do Tejo, entrecortados por centros comerciais davam ao cenário um ar de metrópole do século XXI. Nosso objetivo era o Oceanário, um grande aquário com tubarões, raias, moreias e peixes de tudo quanto é tipo, vindos dos quatro continentes. O mais interesse para um sujeito como eu, que já tive quando mais jovem o hobby do mergulho nos parrachos de águas mornas do meu estado natal, foi ver os pinguins em um ambiente que reproduzia um cenário da Patagônia. Também achei particularmente curioso saber que, na costa sul da Austrália, tem um cavalo marinho que parece um dragão e que subiu de patente e passou a ser chamado de “dragão marinho”.
Fora esses detalhes o que me chamou atenção foi a enorme quantidade de espécies do pacífico e a quase nula presença de amostras da fauna marinha do atlântico sul, mais particularmente do Brasil e da África ocidental.
Foi então que retornou a mim a pergunta que sempre costumo fazer quando piso em Portugal: o que aconteceu com o Brasil? Ou melhor, o que é o Brasil para os portugueses? Sinal de um fracasso? Marca de uma glória perdida? Lugar de uma saudade recalcada ou sintoma de uma mágoa colonial mal resolvida?
O que me parece evidente é que, com a crise se instalando em nosso país e a melhora econômica aqui por Portugal, o fluxo migratório vai novamente se inverter e mais brasileiros virão aqui pra terrinha. Particularmente gente como o nosso casal de conhecidos, vindos de uma classe média eurodescendente, acostumada a estar no topo da cadeia social tropical, mas que será tratada por aqui, como parte de um patamar intermediário que orbita em uma zona ambígua, situada entre os “portugueses de raça” e os “imigrantes”: ciganos, africanos e asiáticos.
Num horizonte de médio prazo, caso a economia ande um pouco de lado, essa pode ser uma configuração política perfeita para que discursos xenófobos e neo fascistas prosperem, até mesmo aqui na pátria de Fernando Pessoa.
Espero, caso isso realmente ocorra, que o espírito do 25 de Abril e a memória da revolução dos cravos seja firme o bastante para segurar o tranco, porque as sociedades são, para a infelicidade geral, pródigas em recaídas neuróticas que fazem ressurgir, vez ou outra, conteúdos não superados de seu próprio passado.
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