Em 2006, Alfonso Cuarón lançou Filhos da Esperança, uma ficção científica distópica na qual a sociedade tornou-se literalmente infértil. Com o filme, o diretor trouxe à tona um tema recorrente de suas produções: a esperança. Ainda que tenha afirmado não buscar peso nas mensagens propostas por Children of Men (no original), o mexicano acreditou que o mundo construiria as próprias conclusões a partir dos créditos finais. E disse: “Quando tu tiras a esperança das pessoas, deixas um vazio, e esse vazio precisa ser preenchido.”
Peço licença, portanto, para comentar sobre esperança como um desabafo, como um brasileiro que vê o seu país de origem justamente desesperançado. Isso porque, em algum nível, a pandemia do novo coronavírus tem passado como um filme por cá, como uma obra de distopia que afoga os limites da humanidade e, assim, transcende os pensamentos da fé — e não do conceito religioso desta, mas em referência à necessidade de uma força sobre-humana para manter-se são.
Em Filhos da Esperança, existe um programa que incentiva pessoas com mais de 60 anos de idade a cometer suicídio, o Quietus. Mesmo em segundo ou terceiro plano durante a história guiada por Cuarón, há momentos intensos que relacionam esse, diga-se, esquema a uma necessidade vital de morte. O próprio nome designa o Quietus como algo positivo e, de certo modo, pacífico. Ainda, por mais que seja parte de um filme em língua inglesa, essa palavra que o intitula parece latina e em sentido coletivo, plural, ficando clara a procura do governo por quietude, por silêncio — de maneira pacífica e supostamente confiável.
Se, por um lado, a distopia do filme revela um embate brutal do planeta contra a falta de recursos e, por tal fato, o incentivo a essa espécie de suicídio medicinal, o que acontece em meu país parece ser a absoluta morte da razão para o amadurecimento de uma celebração à estupidez. Enquanto Filhos da Esperença se passa em uma nação que confia tanto em suas tradições que não detém uma constituição de fato — a Inglaterra —, aqui há uma profunda ressignificação da vida e mortes da cultura e da arte; ou melhor: uma banalização destas em detrimento de um negacionismo orgulhosamente anticiência, anticultural e antiartístico.
Claro que, no filme, há a exposição do sofrimento da população pobre versus a esterilidade satisfeita dos ricos; é algo que transparece em seu conjunto intermídia, com as artes — do David de Michelangelo à Guernica de Picasso — adornando a riqueza infértil. Acontece que, sobre a verossimilhança, André Bazin deixou escrito que “qualquer um que seja o filme, seu objetivo é dar-nos a ilusão de assistir a eventos reais que se desenvolvem diante de nós como na realidade cotidiana”.
A partir de Bazin (ou como uma paráfrase de pensamento), portanto, ponho-me a pensar no quão ilusória pode ser uma vida que nega fatos, nega a ciência, nega meio milhão de mortes e aceita um programa real de incompetência e crueldade em massa. Com o perdão do trocadilho, o que parece se ver na minha “pátria amada, Brasil” não é um Quietus, mas um Genocidus. E é em vista disso que escrevo como um desabafo, como um brasileiro que será pai em algumas semanas para enfatizar a importância do som das vozes das crianças, no filme e na realidade, como o maior senso de resgate do futuro.
Isso porque a minha geração não poderá mais aproveitar o que há de melhor no meu país. É uma geração que vive para resistir; e só resiste porque, como demonstra Cuarón a partir do livro de P.D. James, há sempre esperança — seja em um navio de resgate fictício batizado de Amanhã, seja para preencher o vazio deixado por aquilo que parece uma realidade de extermínio.
- Publicado em 25 de junho de 2021 no jornal O Figueirense (Coimbra, Portugal)