A ópera rock cinquentenária do De Palma

de palma The Rocky Horror Picture Show

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Entre os cineastas da Nova Hollywood, Brian De Palma aparece como o enfant terrible, aquele cara que fazia filmes experimentais só para provocar e chocar a sociedade.

Com o passar dos anos, De Palma parou de fazer comédias satíricas e foi investindo em histórias instigantes e repletas de detalhes, com pontos de virada meticulosamente trabalhados para quebrar toda e qualquer expectativa do público, tal qual o mestre Hitchcock.

Ao ser acusado de tão somente imitar o citado diretor inglês, De Palma inovou e tornou-se referência no uso do slow-motion e da tela dividida, trouxe temas recorrentes para seus filmes, como o voyeurismo, a sexualidade, a culpa e a dupla identidade, e teve o topete de burlar a semiótica e as convenções, convertendo o branco na cor de onde emana o mal.

Compartilhando o amor pela música (principalmente o rock) com Scorsese, De Palma pensava bastante sobre a trilha sonora de seus filmes, e também chegou a dirigir clipes musicais para artistas famosos, como Bruce Springsteen.

Antes de seu primeiro filme sério, Irmãs Diabólicas (1973), e também de Jim Sharman (famoso diretor de musicais, como Hair e Jesus Cristo Superstar) conceber a peça The Rocky Horror Show (que viria a ser adaptada para o cinema como The Rocky Horror Picture Show, em 1975), De Palma já tinha a ideia de fazer uma adaptação rock and roll de O Fantasma da Ópera, mesclada com a premissa de Fausto, como uma sátira ao mundo do entretenimento, expressando ainda sua frustração em ser um artista à mercê de um grande estúdio de cinema. Porém, só recebeu sinal verde em 1974, após a boa receptividade de Irmãs Diabólicas, e assim nasceu O Fantasma do Paraíso, como nos conta o escritor Laurent Bouzereau, no livro The De Palma Cut.

Neste cinquentenário de O Fantasma do Paraíso, filme que ganhou o status de cult e ficou conhecido por ter sido uma das referências estéticas para o mangá Berzerk, resolvi escrever algumas linhas sobre ele.

O Fantasma do Paraíso é um trash delicioso, praticamente uma mistura de Roger Corman e John Waters, que os mais desavisados jamais imaginariam ter sido escrito e dirigido por Brian De Palma.

Numa entrevista a Mike Childs e Alan Jones, para a revista inglesa Cinefantastique, de 1977, De Palma revelou sempre ter pensado que rock e horror eram estilisticamente muito próximos, e ele quis fazer O Fantasma do Paraíso como um filme de horror fantástico. Apesar de amargar um fracasso nas bilheterias, De Palma afirmou ter sido uma ideia bacana, mas vendida de forma errada, e que deveria ter funcionado melhor se fosse uma peça de teatro. Contudo, era seu filme favorito até então.

O filme é centrado na figura do produtor Swan (interpretado pelo cantor, compositor e ator Paul Williams), cuja narração inicial informa, num tom documental:

Ele levou o Blues à Inglaterra. Ele levou Liverpool para a América. Ele uniu o folk e o rock com sua banda The Juicy Fruits, nascida em meio à onda nostálgica dos anos 70. Agora ele procura um novo tipo de som para inaugurar a sua própria Xanadu, sua própria Disneylândia… O Paraíso, o lugar definitivo para o rock.

Swan é um crápula de marca maior, que apenas usa as pessoas para conseguir o que quer e se dar bem. Ele está à procura da grande atração de abertura do Paraíso, e fica fascinado pela música do ingênuo e atrapalhado Winslow Leach (interpretado por William Finley, ator icônico dos filmes do De Palma), enganando-o para se apropriar dela e tirar o músico da jogada, pois quer alguém com carisma para interpretá-la. Porém, Winslow sobrevive a todos os reveses e, mesmo com o rosto e a voz deformados, não deixa barato e se torna uma entidade que ronda o Paraíso de Swan, ameaçando torná-lo um inferno.

Swan e Winslow são opostos que se complementam, e representam o tema da dupla identidade. Enquanto Swan parece um homem normal por fora, mas tem o diabo na alma, Winslow tem o exterior deformado, mas um coração puro. Swan geralmente se veste de branco (o mal, no olhar do De Palma), representando um belo cisne (embora De Palma empregue igualmente tons de vermelho em suas roupas e ao seu redor para empoderá-lo), já Winslow cria a entidade do Fantasma vestindo-se de preto e usando uma máscara que lembra uma ave, tal qual um corvo (uma possível alusão a Os Pássaros, de Hitchcock, pois ele vem como uma ameaça ao império de Swan).

Phoenix (interpretada por Jessica Harper) é a garota pura que será disputada entre Winslow e Swan. Ao ouvi-la cantar, Winslow se apaixona perdidamente, enquanto Swan entende que pode usá-la como atração máxima do seu show, interpretando Fausto. Swan a seduz com seu charme (e poder), despertando ciúme e fúria em Winslow/Fantasma, que procura se reaproximar dela, mas é rejeitado devido à sua aparência (Phoenix não consegue enxergar além das máscaras de ambos). Somente quando as máscaras de Swan e do Fantasma caem, no palco, e ambos morrem, Phoenix compreende tudo tardiamente.

O voyeurismo se faz presente nas câmeras que Swan instala por todo o Paraíso e na sua mansão. O poder de Swan está ligado ao fato de ser aquele que observa sem ser visto, controlando todos à sua volta. Quando o Fantasma descobre a sala secreta de Swan, ele inverte os papeis. O Fantasma acha uma fita cujo conteúdo mostra o pacto de Swan com o diabo, e aí o flashback acontece com o Fantasma e o espectador vendo, no presente, o passado de forma simultânea, através da lente da câmera que gravou as imagens (isso remete ao vídeo documentário sobre as Irmãs Blanchion, em Irmãs Diabólicas, que funciona igualmente como um flashback dentro do tempo presente).

No tocante ao grupo musical empresariado por Swan, ele faz com que os rapazes não tenham identidade, mudando estilo e nome de acordo com a sonoridade ditada pelo mercado (começam como The Juicy Fruits, cantando rock and roll da década de 1950, mudam para Beach Bums, partindo para uma vibe surf music, e terminam como The Undeads, simulando o glam metal teatral do Kiss). Como The Undeads, abrindo para o show de Beef, temos no cenário uma homenagem ao Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene (detalhe para os braços das guitarras e do microfone em forma de foices e adaga, que além de sexualizados, decepam braços e pernas falsos da plateia e no palco, os quais servirão para compor o número de Beef, que representa o Frankenstein de James Whale).

Outras homenagens ao cinema estão presentes no filme, como a cena em que Beef canta no chuveiro e o Fantasma aparece para ameaçá-lo (Psicose), a sequência da tela dividida, na qual o Fantasma planta uma bomba no carro de palco dos Beach Bums (A marca da maldade), e quando o Fantasma observa através das câmeras o assassino de Phoenix se preparando para matá-la e corre para salvá-la (O homem que sabia demais).

A produção de O Fantasma do Paraíso passou por diversos perrengues, como lembra Bouzereau. Primeiro, De Palma foi processado pela Universal Pictures, que detinha os direitos de O Fantasma da Ópera. Eles achavam que De Palma havia feito um remake e queriam que ele pagasse pelos direitos de uso da história. De Palma conseguiu sanar o caso. Aí, perigava receber outro processo, dessa vez da Charlton Comics, editora que à época publicava as HQs de O Fantasma, personagem criado por Lee Falk, então De Palma foi forçado a mudar o título do filme, que era apenas Phantom, para O Fantasma do Paraíso. Contudo, o maior problema veio quando a gravadora Atlantic informou a De Palma que ele não poderia usar o selo Swan Song Enterprises porque eles tinham uma subsidiária chamada Swan Song Records. O filme já estava concluído e o logotipo apareceu em muitas cenas importantes. De Palma teve que mudar o selo diretamente na impressão, por meio de um efeito fotográfico, para Death Records.

Uma lástima a Fox não ter investido melhor na distribuição do filme dentro dos Estados Unidos, por isso ele foi praticamente ignorado pelo público e pela crítica, mas, em compensação, o filme teve uma recepção boa na Europa, chegando a ganhar o Grande Prêmio no Festival de Filmes de Terror de Avoriaz, na França.

Milena Azevedo

Milena Azevedo

Mestre em História (Unisinos/RS), já foi professora e empresária, e desde 2005 milita no campo das histórias em quadrinhos. Atualmente segue como diagramadora, letrista e roteirista de HQs e games, com trabalhos publicados em coletâneas locais, nacionais e em Portugal e Angola, finalistas do Troféu HQ Mix, do Troféu Angelo Agostini e da categoria Quadrinho Alternativo do Festival de Angoulême (França), entre eles: Visualizando Citações - vols. 1 e 2, Fronteira Livre, Máquina Zero - vol.2, Imaginários em Quadrinhos - vol. 4, Haole (webcomic), Amor em Quadrinhos, Penpengusa, Contos Urbanos e Café Espacial #19. Vencedora do Troféu Angelo Agostini de 2019 (Melhor Lançamento) e dos HQ Mix de 2019 e 2020 (Melhor Publicação Mix e Melhor Publicação Aventura/Terror/Fantasia) com Gibi de Menininha 1 e 2. Em 2022, roteirizou as HQs “Oscar e o Pan de 87” e “Viúva Veneno”, ambas publicadas pela editora Ultimato de Bacon. Também criou a webtira Aprendiz de Bruxa, em parceria com Ju Loyola, e atualmente a parceria segue com a desenhista Mari Santtos. Em 2018, fez sua estreia na literatura infantojuvenil com o livro Dara, Dora e as estrelas, escrito a quatro mãos com Glacia Marillac.

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