Já faz algum tempo – mais de uma década, certamente – que parei de emprestar livros. Os motivos são os que todos os apaixonados por livros devem conhecer: a dificuldade que alguns tomadores têm para devolvê-los e o estado em que alguns desses materiais voltam para nossas estantes.
Digo que não empresto mais livros, entretanto não sinto nenhum orgulho ou prazer nisso. Afinal, foram os empréstimos feitos junto aos amigos e às bibliotecas de Currais Novos que fizeram de mim um leitor de bons livros.
Menino que falava pouco e ouvia muito, prestava atenção ao que meus amigos mais velhos indicavam, assim como as bibliotecárias dos lugares onde eu gastava parte de minhas noites adolescentes.
Mais tarde, já na universidade, conheci a biblioteca modesta de meu campus. E preciso dizer desse encontro porque foi lá que pude chegar a Jorge Luís Borges e Manoel de Barros, dois dos escritores mais importantes para minha formação como leitor e arremedo de escritor.
E, voltando aos empréstimos, sempre tive um bocado de cuidado com o que tomava. Cuidava dos livros melhor do que cuidava de mim mesmo, no que continuo igual. Evitava rasuras, dobras, amassados, líquidos, qualquer ameaça. Abria-os com o cuidado da criança que abre o guarda-roupas escuro pela primeira vez, sem saber o que pode haver lá dentro.
Eu certamente seria um escritor ainda pior e um leitor menos fervoroso se não tivesse contado com a generosidade de quem me emprestava livros, por isso devo a meus emprestadores um bocado do que me tornei, para o bem e para o mal.
Durante décadas, emprestei os poucos livros que tinha e quando pude ter alguns mais, continuava emprestando-os. No entanto, os livros não devolvidos ou o estado lastimável em que alguns retornavam me fizeram perder o desapego de emprestar o que sempre me foi tão valioso.
Mas era sempre com alguma tristeza e constrangimento que eu negava empréstimos. Sentia um aperto difícil no peito por não contribuir com a vontade de quem queria ler os livros de que eu dispunha.
Passei então a adotar outra política. Dependendo do pedido e do pedinte, substitui os empréstimos por presentes. Tanto que livros a quem sugeri a leitura – Os Frutos da Terra, de André Gide, é o caso mais emblemático – foram presenteados quatro ou cinco vezes. Eu os presenteava e, na primeira oportunidade, tratava de buscá-los em sebos ou alguma promoção na internet para tê-los por perto outra vez.
Esse desapego – ou quase – está mencionado no próprio livro de Gide, que avisa aos seus leitores para “livrarem-se” de seu livro ao final da leitura.
Ainda que eu nutra imenso amor pela pequena biblioteca que venho construindo – por isso os pedidos e pedintes são sempre rigorosamente avaliados –, meu gosto pela partilha, por espalhar a palavra, continua vivo não apenas no que escrevo, mas também no que leio.
Sigamos espalhando a palavra.
2 Comments
Muito obrigado, meu amigo!
Gostei do diálogo com o famoso título: A menina que roubava livros. O provérbio “O que vai emprestado, volta rasgado”, parece ter sido feito exclusivamente para os livros. A estratégia do eu lírico acaba beneficiando o leitor que a ele recorre. Como a não devolução tem por regra a falta de dignidade e não de memória, esperamos que não se multipliquem os que a ele recorrem.
Sigamos espalhando a palavra, inclusive a de Theo.