O canto de Daíra

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Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas

Belchior

Uma das coisas mais bonitas que vi nos últimos tempos foi o show de Daíra em homenagem a Belchior. Talvez o termo “bonitas” não consiga descrever a grandeza do momento nem tampouco abarcar a experiência que vivenciei essa noite no Belch Bar, que aliás tem honrado seu nome e trazido grandes artistas para homenagear o autor de “Coração selvagem”, “Divina comédia humana”, “Como nossos pais” e tantos outros sucessos que continuam atuais e cada vez mais necessários para refletirmos e, quem sabe, entendermos um pouco do mundo em que vivemos, embora a vida seja muito pior, como diria o próprio artista em um dos seus clássicos, “Apenas um rapaz latino-americano”.

Ariane Cavalcanti, a proprietária do espaço, tem organizado anualmente o Tributo a Belchior e trouxe ninguém menos que Vannick Belchior, filha do artista, em 2021, e Silvero Pereira em 2022. O show de Silvero aconteceu no estacionamento do Restaurante Effó devido a questões técnicas. Nessa mesma noite, a cantora Laryssa Costa também realizou um show maravilhoso, com canções de Belchior e outros clássicos da MPB.

Tive o privilégio de assistir aos dois shows organizados pelo Belch Bar, o primeiro na companhia de Saul Oliveira e o segundo com minha querida amiga Ana Dutra, seu esposo, Celso Dutra, e sua filha Carol. Uma noite memorável em que tive a alegria de reencontrar muita gente querida e fazer novos amigos. Ana Ferreira, cantora, compositora e instrumentista foi um desses presentes que o amor às canções de Belchior me trouxe. Ana, que tem show agendado no Belch Bar no próximo dia 17, lançou recentemente a canção “Contudo”, de sua autoria, que está disponível nas plataformas digitais. Aguardo ansiosa o lançamento do seu disco ano que vem. E que alegria partilhar com ela a força e a beleza do canto de Daíra, cantora que ambas desconhecíamos até a indicação de Ariane alguns dias atrás.

Voltemos ao show de Daíra. O evento foi um daqueles acontecimentos que a gente não acredita que vai dar certo, mas que nos surpreende ao final. Embora meu desejo fosse assistir ao show, não tinha certeza se poderia ir por motivos de trabalho e de um encontro amoroso da maior importância. O trabalho eu consegui terminar cedo e o date não aconteceu. Como sempre faço, divulguei o show nas redes sociais e minha amiga Izala Sarah disse que gostaria de ir, mas talvez não pudesse porque tinha outro evento naquela noite. As outras duas amigas do grupo, Andreza e Maiara, não poderiam nos acompanhar. Fiquei tranquila e pensei: “se der certo, ótimo, se não, vou ficar em casa mesmo”. Suas palavras foram estas: “Quem sabe o evento de Belchior. Vamos jogar para o universo”. O universo fez o melhor e lá fomos nós curtir o show de Daíra com Margareth, amiga de Sarah que conheci hoje. Chegando lá, não tinha mais mesa disponível, mas tive a felicidade de encontrar minha querida amiga Jéssica Bittencourt e esta nos convidou para juntar-se ao seu grupo. E foi uma noite linda, poética, feliz. Viva os encontros!

Ainda estou inebriada daquele show. Impossível descrever o turbilhão de emoções que a artista carioca com sangue cearense (o avô paterno é de Sobral) causou em seus espectadores que assistiram àquela apresentação à luz do luar. Bem que poderiam ser dela estes versos de Belchior: “Quando eu estou sob as luzes / Não tenho medo de nada / E a face oculta da lua, que é a minha / Aparece iluminada”.

Que artista maravilhosa (e completa) é Daíra! Nela tudo se harmoniza: voz, interpretação, força, beleza, carisma. Daíra é visceral. Com seu canto potente, afinado e cortante, é considerada uma das melhores intérpretes de Belchior. Houve uma época em que ela cantava nos metrôs do Rio, quando foi descoberta por sua madrinha musical, como se refere à Elba Ramalho, que mencionou seu trabalho no Altas Horas e a partir de então ganhou mais visibilidade no mundo artística. Ela contou isso durante o show como forma de agradecer ao apoio de Elba. Também nos contou que seu pai é compositor e dele herdou a paixão pela música. Aliás, ela interpretou uma canção dele no show. Entre uma canção e outra, também recitou trechos de falas de Belchior. Um deleite à parte.

Talvez eu não tenha as palavras certas para dizer da beleza e do impacto que me causou o canto torto de Daíra, suas interpretações magistrais de clássicos como “Coração selvagem”, uma das canções que mais me emocionou, mas sigo tentando escrever as emoções dessa noite. Suas versões de “Princesa do meu lugar”, “Hora do almoço”, “Divina comédia humana” também figuram entre as minhas prediletas da noite.

O canto de Daíra é denso, profundo, cortante. O canto de Daíra é suave, leve, é brisa que acalma as angústias dos dias incertos.  O canto de Daíra é faca que corta a carne da gente porque de vez em quando é preciso sangrar para sentir-se vivo. O canto de Daíra é colo que protege na hora do medo. O canto de Daíra é prosa e poesia. O canto de Daíra é riso e pranto, “papo, som, dentro da noite”… O canto de Daíra é alucinação para suportar o dia a dia. O canto de Daíra nos diz que é preciso amar e mudar e as coisas.

Ainda sobre as surpresas da noite e a descoberta de uma artista única que parece beber cada palavra cantada impregnar-se de cada emoção transmitida nas frases das canções interpretadas com maestria. Também merece destaque o músico que acompanhou Daíra no violão. Pernambucano de Olinda, Marcelo Cavalcante emocionou o público ao cantar “Velas do Mucuripe”, uma composição de Fagner e Belchior, e “De primeira grandeza”. Fiquei superfeliz ao descobrir que ele é amigo e parceiro do querido Juvenil Silva, que, além do trabalho autoral, faz um trabalho brilhante em homenagem a Belchior com A Banda dos Corações Selvagens. Esse ano já assisti dois shows d’A Banda na Cervejaria Resistência e o show de lançamento do disco de Juvenil, “Um belo dia nesse inferno”, no Mahalila Café e Arte. Curti este último show na companhia de alguns amigos, entre eles o músico Irlan du Carrasco.

Outro momento marcante da noite foi uma breve e contundente fala de Ariane, quando pediu um espaço para dizer da alegria de receber aquele show, mas também para lembrar a dificuldade que é manter um espaço como aquele em Natal, lugar que “não consagra nem desconsagra ninguém”, como diria Câmara Cascudo. Ela lembrou de uma época em que decidiu morar no Rio de Janeiro para ter mais acesso à arte produzida naquela região do país, quando conheceu e se encantou com o trabalho de Daíra. Depois, no entanto, percebeu que poderia continuar no seu lugar e trazer os artistas para sua terra. E assim nasceu o Belch Bar. Determinação que faz lembrar os versos do próprio Belchior, jovem que deixou Sobral para viver na cidade grande e aprendeu pela dor o poder da alegria: “Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos! / Não sou da nação dos condenados! / Não sou do sertão dos ofendidos! Você sabe bem: Conheço o meu lugar!”.

Minha única queixa da noite é que “Fotografia 3×4”, uma canção-crônica que sempre me emociona, não está no repertório da artista. Quem sabe um dia eu não tenho privilégio de ouvi-la cantar uma das minhas canções prediletas do mestre Belchior.

Na volta para casa, após uma breve pausa para lanchar, conversávamos sobre o poder da arte e a importância de momentos como aquele para nos livrar daquela sensação de que a vida é feita só de trabalho, cobranças, problemas… Afinal, nem tudo se resume aos boletos que a gente precisa pagar. Que o canto torto de Belchior continue sendo essa força para enfrentar o dia a dia. Que o canto de Daíra continue iluminando nossas noites escuras e sua força para cantar nos lembre que, apesar dos pesares, vale a pena viver e acreditar que podemos construir um mundo melhor. A benção, Daíra. Salve salve essa grande artista carioca com sangue nordestino!

Andreia Braz

Andreia Braz

Escritora e revisora de textos.

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