O beijo de amor de Maura e Marighella

maura e marighella

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Morar em Brasília tem dessas coisas. Estava à toa na vida andando entre a rodoviária do Plano Piloto e o Palácio do Congresso Nacional, buscando nem sei bem o quê naquele vasto espaço com ministérios de um lado e de outro como se fossem peças de um dominó gigante prestes a desabar uns sobre os outros quando um tanque vindo também não sei de onde me despejou uma baforada de fumaça tóxica narinas adentro. Ainda bem que eu estava de máscara.

Mas nem sempre a obviedade da covid é o inimigo a postos na esquina mais próxima, caso esquinas houvesse. Fugi pra casa às pressas, confuso com a situação, mas outro susto me esperava ao abrir a porta do apartamento numa Asa Sul bucólica com seus jardins urbanos inimagináveis em qualquer outra capital caótica do país em desagregação: dei de cara com um casal aos beijos na minha sala de estar. Continuava tudo muito confuso, mas ainda assim eu era capaz de divisar os rostos em convulsão naquele beijo francês de fim de novela: eram Carlos e Maura, o casal de guerrilheiros que a ficção e a realidade juntaram na mesma cena do meu pesadelo ocasional.

É nisso que dá ler as trocentas páginas da biografia de Carlos Marighella em que Mário Magalhães, jornalista carioca, coleta, organiza e analisa as informações sobre o comunista brasileiro que atravessou duas ditaduras levando chibata no lombo sem recuar um milímetro nas suas ideias que, sistema político repressor ou libertário à parte, giravam em torno de mais igualdade social, menos miséria, mais civilidade política neste Brasil que nunca deixou de nos surpreender com pesadelos reais.

Meu sonho mau certamente também é resultado das noites em que me pego maratonando os capítulos de Roda de Fogo, novela global de 1986 que causa uma dor inominável a quem cedeu ao apelo do Globoplay e se pôs a revê-la no streaming do até agora mui confuso e nem um pouco utópico século XXI. Nem a saída de cena mitológica deste Tarcísio Meira icônico para a história real e ficcional do país tem poder de causar tamanha ironia. Em Roda de Fogo, rodada justo no período em que o país elegia a assembleia constituinte que nos deu a carta de direitos sociais de 1988, cada diálogo pode ser um triste comentário cruel e involuntário sobre o futuro do então distante 2021.

Maura era Eva Wilma, outra perda do duro presente, representando com sua habitual maestria uma ex-guerrilheira urbana que, como poucos, sobreviveu à repressão policial do período após sucumbir à resistência armada que o fechamento de todos os canais de expressão política decretara. Ela volta ao Brasil tremendo de medo – imagine se Maura pudesse sonhar minimamente com o futuro, assim como cada um dos brasileiros que assistiram à exibição original em 1986 – de que aquela conversa toda de redemocratização fosse só de brincadeirinha.

O trauma da tortura estava por trás de cada fala da personagem e, sim, ela vai, como ocorreu de fato com a também atriz e então deputada Bete Mendes, dar de cara um dia com seu torturador em pessoa. E não é o general Hélio d’Àvila, uma caricatura perfeita que os autores montaram para zoar os militares em retirada, mas que, as ironias não param, lembra muito vários dos que estão em cena no governo em vigor.

Mas a fumaça do tanque soprada no meu nariz perdido num pesadelo ao menos mostram que, se o inacreditável se realizou, também o fez dessa maneira tosca e mambembe, com a profusão de Pazuellos tão arrogantes quanto atrapalhados, pra não falar no chefe, que tisna a bandeira de qualquer ordem ou instituição.

marighellaMarighella, o mulato baiano filho de preta com italiano que resultou num caso típico de brasileiro de seu tempo e lugar, impressiona pela capacidade de resistência. Ele não tem o pavor nem um pouco fictício de uma Maura e sim a pele grossa capaz de reter as chibatadas de mais de uma ditadura e só cair diante da última delas num cerco que fez do interior de um fusca um paredão de fuzilamento. Passa quase que uma vida inteira nos desvãos da clandestinidade e ainda assim emite, das sombras, uma luz carismática que o faz querido até fora do círculo da política de fato. Por um curto período, arradia publicamente essa capacidade de se fazer notar como constituinte de outra assembleia progressista – a maior que tivemos nesse quesito, quase ao ponto da ilusão em relação ao país em que funcionava, e que daria origem às Constituição de 46, a mais odiada pelos refratários ao progresso igualitário.

Foi esse casal nem um pouco imprevisível que encontrei aos beijos na minha sala, ambiente que devem ter julgado seguro em 2021, sem saber que lá fora grassa uma ordem caótica e destrutiva que tenta emular os miasmas de ditaduras de antanho.

Acordei do sono ruim e do pesadelo inesperado com o som da televisão ligada, dando a notícia da morte do Tarcísio Meira que também está nesta Roda de Fogo que ri da gente do fundo da tela plana de alta definição, como se dissesse pra gente do lado de cá e de hoje, cuidado, vá com calma, 1986 lhe observa. É como se Renato Vilar, o empresário grosseiro de Tarcísio Meira naquela história, cobrasse ao telespectador abobalhado: o que vocês, imbecis, fizeram com toda aquela esperança do meu tempo? Merecemos o puxão de orelha, e como.

Com uma ironia suplementar: a novela elegia um empresário com paradigma de corrupção – ele e seu entorno, formando por financistas vorazes e advogados comprados. Sempre foi mais fácil culpar os políticos, pois não? Parece provocação do sistema Globo insatisfeito com a forma como o governo que ajudou a eleger indiretamente o tem tratado essa reedição em streaming de Roda de Fogo. Tem muito a dizer à época atual, assim como a biografia escrita por Magalhães.

Leia o livro, veja a novela, use máscara contra a fumaça e saiba reconhecê-la nas tantas vezes em que tem sido usada para disfarçar o mau cheiro do desmonte do país.

No diálogo entre os anos passados e o tempo atual, 86 menos 64 é igual a 21 – a matemática da história brasileira segue uma aritmética diversa. Quisera pudéssemos maratonar a realidade, acelerando a montagem desse filme ruim. Mas temos que nos contentar com a reexibição de um passado que grande parte da população – que a viveu de fato e tem idade para lembrar – preferiu esquecer, quando não ignorar. O pesadelo continua, quer você siga dormindo ou faça a opção de permanecer acordado.

Tião Vicente

Tião Vicente

Jornalista e servidor público (às vezes essas duas atribuições se confundem). Nasceu por acaso em Caicó, cresceu em Parelhas, estudou em Recife e Natal, aprendeu jornalismo e juventude nesta última, cansou um pouco e mudou para Brasília, trabalhou em edição em jornal e TV até fazer um concurso público para entregar esse brilhante currículo à emissora de tevê da Câmara dos Deputados. Tem funcionado até hoje. Por fora, pratica essas infidelidades paraliterárias. Tem uma central de blogs, quase todos esquecidos (para referência, arrisque novosopaodotiao.blogspot.com).

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