Depois de tantas chamadas, comentários, discussões, até mesmo de canais progressistas a eleger a nova maravilha do mundo cinematográfico, eu resolvi assistir ao filme ‘Não olhe para cima’. Bem, eu não sou tão assíduo em plateias de cinema. Talvez, por isso, tenha um gosto mais distante. Confesso que prefiro as produções não-estadunidenses da californiana de Los Gatos. Mas, quem sabe, a nova experiência poderia surpreender…
Brasileiros, habitantes da parte inferior do globo, os críticos e entendidos, estudiosos, militantes, todos se alvoroçaram por todos os lados. Acharam temas e subtemas no filme. Cultura espiritual das ideias, da arte, da filosofia e dos sentimentos. A desumanização implantada pelo processo capitalista de produção. E por aí seguiram as análises mais profundas. Enfim, precisamos entender que tais críticos têm mais conteúdo criativo do que algumas produções que analisam.
E o que dizer da ficção norte-americana que se apresenta como baseada em possíveis fatos reais? Podemos começar com algumas observações básicas. Ou seriam aversões básicas? Tentarei não ser preconceituoso.
Eu li a crítica brasileira que me serviu de garantia. Deitei minha atenção, sossegado, e pronto. A sci-fi satírica de Adam McKay me faria rir. Eu não sou crítico. Nunca me caberia duvidar. E a coisa rolou. Enquanto me arrumava na poltrona, o exemplar fílmico foi-se desembuchando. Como um cometa apontando o nariz no céu. Eram tiradas de humor. Não exatamente de humor. Difícil conceituar. Há comédias estadunidenses que são feitas para estadunidense ou para estadunidense-cover. Deixei para lá. Busquei os códigos secretos escondidos. Estavam muito escondidos. Eram narrativas que me sugeriam uma complexidade em nível de Os trapalhões, em ‘Atrapalhando a suate’. Desisti da complexidade. Acho que eu precisava rir. Lembrei da suate dos trapalhões. Fiz um ar de riso. Até me cobrei por isso. Lembrei de outros pastelões americanos, até mais eficientes, apertando os cintos, enquanto o piloto sumia, uma, duas, sei lá quantas vezes… A rabiçaca dos foguetes lançados pela poderosa Nasa, voltando à terra, até sugeriu o cavalo de pau do Aperte os cintos. Mas, acho que faltava alguma coisa. Talvez algumas tortas na cara. Quanto mais eu perseguia a narrativa, mais estarrecido eu ficava. Minhas sobrancelhas se aproximavam, eu franzia a testa. Seria mais produtivo pausar a execução, e reler as críticas. Elas me indicariam o momento. Eu ainda me indagava sobre o momento no qual deveria rir.
Comecei a ruminar velhas inquietações. Nas profundezas de minhas implicâncias, não consigo não perceber as marcas registradas desses filmes estadunidenses. Sim, caiu a ficha. Era uma autêntica produção norte-americana. Havia marcas registradas. Não falarei das bandeiras nacionais tremulantes e estreladas em azul e vermelho. Nem dos discursos de salvação do mundo. Outros detalhes também me incomodam. Eu começo a observar o colorido artificialista das peles dos personagens. Podemos contar. São tantos loiros, tantos pretos, tantos vermelhos, tantos indianos, tudo como se o próprio departamento de matemática do MIT tivesse calculado, com base em complexos algoritmos. Chamam a atenção as inversões propositais e artificiais da realidade. No filme, colocaram um ator negro no papel de chefe de defesa planetária na NASA. O país dos Derek Chauvins tenta, a todo custo, disfarçar a face real, histórica, excludente, desigual, essencial e sociologicamente racista de seu povo.
Os figurinos dos personagens querem passar a ideia de uma sociedade americana descolada, múltipla. Algo do tipo paraíso multicolorido das oportunidades do mundo livre. E, se a criatividade da produção resolve travar de vez, pode ser acudida por apelações às reconstruções. Assim, a moça Dibiasky, que dá nome ao cometa do fim do mundo, descende do velho Spock, e seu cabelinho-de-franja; o seu namorado escapou do The Big Bang Theory; o magnata Peter Isherwell, a la Leslie Nielsen, de The Naked Gun; e segue o andor.
Poderia ser inimaginável que a presidente Orlean fosse abocanhada por uma criatura alienígena bizarra qualquer, ao final. Não se preocupe com esta revelação. Algumas pessoas nem percebem o final-extra que se adere ao desfecho da trama. Mas, além das surpresas sem graça, a produção cinematográfica, por sua origem, cumpre uma função maior. Compõe mais uma vitrine dos EUA. Por seu aspecto dito crítico, e dito não-real, enfatiza a imagem de um país pacífico e feliz, onde o sonho americano é supostamente prazeroso, os soldados são supostamente heroicos e os maus são supostamente os outros. E os maus internos, no caso do filme, são transformados nos outros, também. Assim, funciona a indústria do cinema paquidérmico estadunidense. Cada vez mais, a grande ferramenta do soft power governamental da maior potência bélica do mundo.
Em resumo, o que transparece é a construção proposital de um processo influenciador. De aparente irracionalidade, os vieses desse e de outros filmes críticos norte-americanos, mesmo os de baixa qualidade, conformam estratégia de engenharia de opinião pública. Pouco além disso. Apenas, para criar uma aparente liberdade de informação e debate. São aparências democráticas. Aparências necessárias para encobrir a verdadeira função dessa indústria. Nela, filmes independentes e críticos ao sistema (e muitas vezes ideologicamente contrários ao próprio império produtor) convivem com a produção violenta, belicista, opressora, de dominação geopolítica e cultural do mundo.
Há hipocrisia em nosso dominante cultural. Há um requinte na sua crueldade opressora. Um pouco além da opressão. Como se chibatasse as nossas costas e chorasse por nossa dor, arvorando-se a nos roubar o próprio grito. Em sua onipotência, o dominante nos poupa da revolta, do esforço de fazer chacota, de ridicularizar, de criticar. Cabe-nos utilizar a própria crítica paquidérmica que os paquidermes se impõem uns aos outros. De quebra, entronar a perfeição desse regime tão democrático, do espírito de liberdade e de mundo livre. ‘Não olhe para cima’ – título inegavelmente sugestivo –, além do pastelão empacotado, tem a pretensão de nos manter calados. Se há o que criticar, eles se criticam por nós. Não precisamos nos indignar. Está tudo bem, tudo certo. A indignação deles resolve tudo. Devemos apenas embarcar, contempladores. Enquanto tudo permanece do mesmo jeito que era antes.
Desculpem-me os aficcionados, mas a máquina antiquada, mesmo disfarçada de modernosa, segue ostentando seu poder de manipulação. ‘Não olhe para cima’ vai além do retrato bruto de nossos tempos. É a representação de um império decadente que ainda se mantém império.