Se fosse feita uma montagem dos principais acontecimentos históricos do século 20, Murilo Melo Filho estaria na foto em boa parte deles. Entrevistou, conviveu ou esteve com De Gaulle, Kennedy, Fidel Castro, Che Guevara, Jânio Quadros, Juscelino Kubistchek, João Goulard, Carlos Lacerda, Café Filho, Nixon e Gamal Aber Nasser.
Cobriu as guerras do Vietnã e Camboja. Presenciou e até interferiu em momentos cruciais da história política brasileira. E até o dia hoje, data de seu falecimento aos 91 anos, vivia o descanso de um dos raros potiguares imortais da Academia Brasileira de Letras.
No primeiro trimestre de 2012, eu, o jornalista Albimar Furtado e os intelectuais Afonso Laurentino Ramos e Ticiano Duarte fomos à aconchegante casa de veraneio de Murilo, à beira-mar da praia de Cotovelo, litoral sul potiguar. Uma tarde mansa de longo papo para publicação na edição 17 da revista Palumbo.
A seguir, transcrevo alguns dos principais trechos da entrevista de 8 páginas inteiras. Excluí as perguntas e coloquei tópicos. As transcrições abaixo tentam traçar um panorama linear da carreira do jornalista Murilo Melo Filho. Foi muita história para contar:
De Natal a Nova Cruz
“Eu trabalhava aqui na “República”, com 16 anos de idade, ao lado de Luiz Maranhão Filho, Aderbal de França, Rivaldo Pinheiro, Edgar Barbosa, Valdemar Araújo (…) Naquele tempo, aqui em Natal, os bondes paravam à meia noite. Nós estávamos morando no Tirol e então eu vinha da República, na Ribeira, até o Tirol a pé. Tomava muita chuva numa idade de crescimento, peguei uma bronquite nos pulmões, e me aconselharam a ir para Nova Cruz, por causa dos seus ares, bebendo leite ferrado com uma pedra quente e misturado com mastruço. Então me curei da bronquite. Foi assim que Nova Cruz entrou em minha vida.”
Tirol, rua Apodi
“Eu me considero muito feliz por ser natalense. E faço disso um galardão de minha vida. Ainda bem que construí essa casa em Cotovelo, para matar as saudades. Eu sinto muita falta de Hênio, meu irmão. Morávamos ali na rua Apodi, 558. Meu pai construiu lá uma casa em 1938. Era a única em todo o quarteirão. Tínhamos como vizinho apenas a igreja de Santa Terezinha, o palacete de Câmara Cascudo e o Seminário de São Pedro. Jogávamos futebol ali na areia da rua, com Marcelo Carvalho, Eider Furtado, Oldamir Soares, Moacyr Picado, Eider, Edgar e Etiene Reis e Renato Magalhães”
Um provinciano no Rio de Janeiro
Transcorridos tantos anos, volta a meu pensamento às angústias e sofrimentos que enfrentei naquela assustadora megalópole. O moço tímido das peladas na areia do bairro Tirol via-se de um momento para outro aterrorizado ante os arranha-céus da cidade grande. Era vencer ou vencer. No Rio, enfrentei as madrugadas nas redações dos jornais, as aulas noturnas na Faculdade de Direito, geralmente dormindo sobre as carteiras, vencido pelo sono e pelo cansado, o escasso dinheiro para a média com pão e manteiga e para as passagens do bonde, as penosas marchas dos domingos, na infantaria do CPOR.
Família
Faço um balanço sobre a maturidade e vejo, feliz, de que nada tenho a me arrepender: nem do casamento de 50 anos, celebrado com a mesma mulher, Norma, companheira admirável, nem dos três filhos que juntos tivemos, nem da religião católica, que professo até hoje com fervor, muito menos do jornalismo, a profissão que escolhi desde menino.
O estudante
Estudei no Marista e depois no Atheneu. Foiram meus professores, entre outros, Câmara Cascudo, Clementino Câmara, Celestino Pimentel, Alvamar Furtado, Véscio Barreto, monsenhor Mata, cônegos Luiz Vanderley e Luiz Gonzaga do Monte, Esmeraldo Siqueira e Luiz Antonio dos Santos Lima, todos mestres admiráveis.
De Natal ao Rio
No jornalismo comecei aos 15 anos, em ‘O Diário’ de Djalma Maranhão e Rui Paiva. Eu era o irmão mais velho de 6 e resolvi ajudar nas despesas de casa. Mas Natal não tinha faculdade. Tinha que se recorrer ao Recife ou Maceio. Dei um pulo maior e fui ao Rio. Embarquei num catalina ali no Potengi, em frente ao Centro Náutico. Uma viagem de 48 horas.
Jornalista no RJ
O único jornal que me deu chance foi o Correio da Noite para uma reportagem marítima. Eu e mais cinco repórteres de grandes jornais pegávamos uma lancha da Polícia Marítima interceptar transatlânticos que chegavam do exterior e entrevistávamos passageiros importantes. O ano de 1950 coincidiu com as peregrinações do Ano Santo, e o Correio da Noite, como jornal católico, tinha o direito de indicar um repórter para acompanhar uma peregrinação daquele Ano, em Roma. Então nós saímos num cargueiro grego com o nome de Jenny, que no máximo poderia transportar 15 passageiros, mas naquela viagem transportava 300. Enviei várias reportagens pelos Correios sobre o Ano Santo e sobre a situação política da Itália e da França.
Carlos Lacerda
Carlos Lacerda leu minhas reportagens e me convidou a trabalhar no jornal que ele iria fundar, o Tribuna da Imprensa (…). Fui lá já encontrei Aluízio Alves, que era redator-chefe e a segunda pessoa, no jornal, depois de Lacerda. Entrei no caderno de Política. Cobri a Câmara Federal, sendo testemunha da fase áurea da democracia brasileira, entre 1946 e 1960.
Getúlio x Lacerda
Lacerda crescia na onda de desgaste de Getúlio (…). Haviam se frutado tentativas anteriores para matar Lacerda. No dia do atentado, 4 de agosto de 1954, Lacerda foi palestrar num colégio da Tijuca. Um grupo de lacerdistas desconfiou da presença, na plateia, de três capangas da guarda pessoal de Getúlio. Carlos voltou comigo, no meu carro Opel Olympia. No banco de trás, vinham o seu filho Sergio e o major Rubens Vaz. Quando chegamos na rua Toneleiros, 180, Carlos e o majojr saltaram. Carlos tentou entrar pela porta central, mas então viu que não tinha levado a chave. Despediu-se do major e desceu uma rampa para entrar pela garagem. Numa questão de segundos, o pistoleiro cruzou na rua Toneleiros e fuzilou o major Vaz, que ficou emborcado na calçada.
Lacerda encontra Café Filho
As 11h do dia 11 de agosto de 1954, eu estava na Tribuna da Imprensa quando Lacerda ligou para mim: “Estou precisando muito me encontrar com seu conterrâneo”. Ponderei: “Fui muito amigo de Café, quando ele era deputado federal. Faz mais de um ano que não o vejo, desde que ele se elegeu vice-presidente. Mas se você está precisando falar com ele, vou agir”. Fui ao Ministério do Trabalho (…) “Presidente, estou aqui numa missão do Carlos Lacerda. Ele precisa muito falar com o senhor”. Aí ele evitou: “Mas Murilo, estou evitando encontros meus que pareçam conspiração contra o governo do Dr. Getúlio (…) Mas Murilo, espere um pouco. Porque com o Carlos, eu me encontro. Tudo depende do local. Onde?”. Olhou pra mim e perguntou: “Não pode ser no seu apartamento?”. “Não, presidente, porque eu moro num apartamento muito modesto, pouco propício a um encontro tão importante”. A solução foi o apartamento do conterrâneo Olavo Medeiros, então hospedado no Hotel Serrador. (…) Levei o Carlos já com a perna engessada por causa de um tiro que tinha recebido na rua Toneleiros. Entrou pulando numa perna só e amparado em meu ombro.
Café x Getúlio
Café e Lacerda conversaram por duas horas (…). Quando saiu do apartamento, sentado numa cadeira de rodas, Carlos foi me vendo e fazendo assim com o dedo, o gesto de “tudo ok”. Naquele dia, 11 de agosto de 1954, às 16 horas, Café entrava realmente na conspiração para derrubar o governo de Getúlio.
Após suicídio de Getúlio
Fui para o apartamento de Café, em Copacabana. Cheguei lá, estavam vários líderes da UDN reunidos em torno de Café, que dizia: “Eu sou o vice-presidente que tenho de assumir a presidência vaga”. Então saímos num cortejo de três automóveis: um na frente levando Café, abaixado no banco para não ser reconhecido por aqueles exaltados manifestantes, outra, o meu carrinho, e o terceiro carro, que levava o Raimundo de Brito. (…) Quando chegamos ao Palácio das Laranjeiras, perguntei ao porteiro: “Você quer nos deixar entrar com o presidente Café Filho?”. O porteiro desconhecia o presidente Café Filho e pediu identificação. Entramos a muito custo. Café assumiu e começou a acumpliciar-se com as forças da UDN para evitar a candidatura de Juscelino, então governador de Minas.
Amizade com Juscelino
Eu era chefe da seção política da Tribuna de Imprensa. Na segunda vez em que Juscelino foi a Brasília, convidou-me para ir junto (…). No dia seguinte, Juscelino estava batendo na porta dos nossos quartos e convidando: “Vamos ver as obras de Brasília” e nos levou, numa rural Wills, até o local onde hoje é a Praça dos Três Poderes. Apontava: “Aqui vai ser o Senado, aqui será a Câmara. Aqui vai ser o Palácio do Planalto, onde eu vou trabalhar e do outro lado será o Palácio do Supremo. Aqui defronte, vão ser os Ministérios”. Eu olhava e só via lama e poeira. Fiquei horrorizado, voltei pro Rio, reuni os Bloch e disse: “Vamos entrar nessa porque o homem é doido e vai construir Brasília”. Foi aí que a Manchete entrou na luta de Brasília. Eu ia todas as semanas com o fotógrafo Gervásio Batista.
Na Manchete
Publiquei colunas na Manchete por 30 anos. Procurei inovar o colunismo com notas pequenas, o lado humano da notícia, o que o cara diz, faz ou falou com seu nome em negrito, para destacá-los aos olhos do leitor.
Com notáveis
O jornalismo político me deu acesso a reis, rainhas, príncipes, ditadores, governadores, senadores, deputados, presidentes da República, chefes de Estado e de governo, homens poderosos. Em missões jornalísticas acompanhei Café Filho e Juscelino a Portugal; Jânio Quadros a Cuba; João Goulard aos EUA, México e China; Ernesto Geisel à Inglaterra e à França; João Figueiredo à Alemanha e ao Japão; José Sarney a Portugal, EUA e Rússia; Fernando Henrique à Itália e à Espanha. Cobri a Guerra do Vietnã em 1967 e fui o primeiro jornalista brasileiro a cobrir a guerra do Camboja.
No mundo
Conheci os picos-gelados de Zermat na Suiça e as geleiras de Anchorage, no Polo Ártico, o frio de Londres e e Los Angeles, a neve de Kiev, de Leningrado e dos Montes do Ural, na antiga União Soviética, as nevascas de Oslo e de Helsinque, o calor da Galileia, do Mar Morto e as tórridas plantações de café na Costa do Marfim; a miséria dos bairros de El Kardac, no Cairo e do Brown Bovery, em Nova Iorque; o luxo de Hollywood e da Côte D’Azur; os templos budistas de Angfor e de Phnom-Penh, no Camboja, de Bangok, na Tailândia e de Kioto, no Japão; os lugares santos de Roma e de Jerusalém. Foram 18 viagens à Europa, 15 aos Estados Unidos, quatro à África e três à Ásia.
Em Cuba com Jânio
(…) No nosso último dia em Havana, o embaixador do Brasil em Cuba ofereceu um coquetel para despedida de Jânio Quadros. Nós estávamos lá, na Embaixada, quando chegou Fidel Castro, que há pouco mais de cinco meses, tinha descido de Sierra Maestra e deposto o ditador Fulgêncio Batista. Ele chegou com “Che” Guevara e Raul Castro e começou uma estranha conversa (…). Nisso Fidel interrompe a conversa com Jânio e passou a uma sala onde eu estava com outros vários jornalistas e procurou esconder o seu revólver em cima de um móvel. Era uma peça bonita, com cabo de madrepérola, que ele havia ganho de presente de Anastas Mikoyan, ministro russo. Fidel tinha adoração por esse revólver. Ele deixou a arma lá e foi terminar a conversa com Jânio na sala vizinha. Eu então vi quando um colega jornalista roubou o revólver e o colocou na cintura, dentro do paletó.
De Gaulle, em Paris
Éramos convidados especiais do governo francês, que nos hospedou em hotel de luxo, o “George V”. Encontramo-nos em seu bar com o pintor Di Cavalcanti, que estava exilado em Paris e que presentou cada um de nós com dois quadros de sua autoria, hoje valiosíssimos. Participamos depois de uma coletiva concedida pelo presidente De Gaulle, no Palais d’Elysés.
Dom Eugênio
Dom Eugênio amparou muitos perseguidos pela polícia na revolução de 64. Tem o caso concreto de um jornalista pertencente ao Partido Comunista, meu colega na Academia Brasileira da Imprensa. Ele me procurou chorando porque um filho seu tinha sido preso e tinham sumido com ele. Eu disse: “Só tem um homem capaz de ajudá-lo. É o cardeal Dom Eugênio Sales, contanto que você nunca revele a interferência dele”. Liguei pra Dom Eugênio, que prometeu interceder, junto ao general Sizeno Sarmento, comandante do I Exército, no Rio de Janeiro. Dom Eugênio tinha grande prestígio junto aos militares, sobretudo porque agia em rigoroso sigilo. No dia seguinte, o rapaz tinha sido localizado e já estava solto.
Cobertura de guerras
Como correspondente internacional cobri a Guerra do Vietnã, em 1967, em Saigon. Éramos eu, o Gervásio Batista e mais três jornalistas estrangeiros. Tenho uma foto minha, em pleno campo de guerra com o Gervásio e um major vietnamita. Estávamos hospedados no Hotel Le président, o único decente em Saigon, quando fomos convidados pelo comando americano a fim de vermos uma operação de guerra para recuperar a cidade de Hué. No dia seguinte à nossa saída do Hotel, o mesmo vietnamita que todas as manhãs entregava roupas lavadas e engomadas aos soldados e oficiais americanos, naquele dia escondeu nelas uma bomba que explodiu, matou vários deles e destruiu andares inteiros do Hotel.
No Camboja
De Saigon, ainda no Sudeste asiático, fomos a Vientiane, capital do Laos e a Phon-Pehn, capital do Camboja, onde estivemos na semana anterior ao banho de sangue comandado pelo ditador Pol Plot e pelo Khmer vermelho, com milhares de vítimas. Quando o nosso avião, na companhia de vários jornalistas estrangeiros, decolou no aeroporto de Phon-Pehn, vimos pela janela que atiradores disparavam lá de baixo contra ele, na esperança de derrubá-lo, o que certamente teria grande repercussão internacional.
Ingresso à ABL
Foi muito difícil. A Academia tem 40 acadêmicos eleitores. Quando abre uma vaga você precisa ter o voto da maioria desses 39 votantes. Juscelino me disse: “Quanto menores forem, mais difíceis os Colégios Eleitorais são. Eu tive o voto de cinco milbões de brasieiros, que me elegeram para a Presidência. Mas não consegui o voto de 20 acadêmicos, que não me elegeram para a ABL”. Ele perdeu ara um modesto escritor goiano, Bernardo Elis, apoiado pelos militares, que se considerariam humilhados se Juscelino fosse eleito. A Academia é uma entidade importante. Não raro as eleições são muito difíceis, com escolhas muito penosas e os acadêmicos tendo de sofrer pressões não raro, fortíssimas.
Disputa na ABL
Enfrentei um senhor intelectual chamado Alberto Carlos e Silva. Firmamos compromisso de que o derrotado visitasse o vencedor no dia da eleição para cumprimentá-lo e que o derrotado teria o voto do vencido numa próxima eleição. Venci por 24 votos a 14.
A ABL
São 33 andares, todos lotados. Seus aluguéis custeiam todas as nossas despesas. Sei porque já fui seu Diretor Financeiro e Diretor Secretário, além de outros quatro anos em que fui construtor e Diretor de sua Biblioteca Rodolfo Garcia (nome de outro potiguar). Já dei, portanto, minha cota de trabalho à Academia.
Paulo Coelho
Não tínhamos o direito de recusar a eleição de Paulo Coelho, quando ele estava sendo saudado pelos intelectuais e pelas academias do mundo inteiro. Era o prestígio de um autor que já vendeu 130 milhões de livros, em 50 países. Então como explicar que tínhamos recusado este homem? Mas não gosto da literatura dele.
Gratidão ao jornalismo
O amor ao jornal, à revista e à televisão ofereceu-me tudo isso, a que eu, a rigor, pelas minhas origens modestas, não teria direito em vida. Ele não me fez um homem rico, nem me deu faustos ou opulências, mas me proporcionou uma estabilidade profissional e financeira suficiente para dar à minha família uma vida digna, com conforto e bem-estar. Por tudo isso, nunca fui outra coisa na vida senão jornalista, tentando devolver à minha profissão, em dedicação e em trabalho, tudo quanto até hoje tenho recebido dela, que considero uma profissão fascinante e maravilhosa, quando exercida com correção, entusiasmo e dignidade. Por esse jornalismo, muito cedo começou a minha vida, quando menino ainda, entrei pela primeira vez na redação de um jornal, o Diário de Natal, para ganhar o salário de 60 mil réis, por mês. Por ele, sofri. Por ele, vivi. E por ele ainda hoje continuo vivo.
FOTOS de Murilo Melo Filho: Adriana Amorim (reprodução da revista) e acervo