Michelangelo Antonioni: eclipsando os sentimentos

Michelangelo Antonioni

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No início da década de 1960, o cineasta Michelangelo Antonioni orquestrou três filmes para discutir a inabilidade humana de entender e expressar de maneira assertiva os sentimentos, tanto para si quanto para os outros.

A falta de traquejo com as emoções foi direcionada, por Antonioni, especificamente para os membros da elite burguesa, porque alienados e ensimesmados ou indiferentes e entediados, ponderando se realmente haveria enlaces amorosos verdadeiros entre membros de classes sociais distintas, uma vez que almejavam metas diferentes na vida.

Cria do neorrealismo, Antonioni foi criticado por ter optado em mostrar a realidade da burguesia, mas como marxista que era, ele o fez não para exaltar a elite, pelo contrário, foi na intenção de criticar a alienação e a vida vazia dos abastados.

O filme que inaugura a chamada “trilogia da incomunicabilidade” é A Aventura (1960). Nele, vemos a dificuldade da personagem Anna (Lea Massari) em dialogar de forma satisfatória com seu noivo Sandro (Gabriele Ferzetti), para quem as palavras são inúteis, pois terminam criando mal-entendidos. Assim, Anna começa a se questionar sobre seu real sentimento por ele (seria amor, posse ou capricho?), entendendo ser necessário um afastamento mais longo do que aquele já vivido (como o rapaz trabalha em outra cidade, eles se encontram apenas mensalmente) para ela decidir se continuar naquela relação valia mesmo a pena.

Em meio a um cruzeiro pelas ilhas italianas (com casais amigos que também não conseguem entrar em sintonia), Anna desaparece, deixando todos preocupados, principalmente Sandro e sua melhor amiga, Cláudia (Monica Vitti) – a única da roda, tirando os empregados, a não pertencer a uma família abastada. Eles não medem esforços para procurar Anna, mas a aproximação repentina acende uma fagulha, e Sandro passa a desejar Cláudia perdidamente, enquanto ela o rejeita fortemente, em nome de sua amizade por Anna. Isso deixa Sandro desconcertado. Para ele, como Anna está ausente, não há traição (bem nos moldes de “o que os olhos não veem, o coração não sente”); além de sua certeza de que Anna achava não ser suficientemente amada por ninguém, facilitando seu súbito desinteresse por ela (como as relações são fluidas, Anna está no passado, e Cláudia é o presente). Cláudia, que vem das massas, diz não estar acostumada a esse tipo de atitude tão fria. Quando as buscas se intensificam pelo território italiano, elas passam a ser um pretexto para Sandro e Cláudia ficarem juntos, e eles não sabem lidar com as emoções que os envolvem. Apesar de torturada pela culpa, Cláudia acaba se entregando de cabeça a Sandro, esperando uma reciprocidade no sentimento (não apenas desejo, e sim amor). Agora, Anna passa a ser uma ameaça ao novo casal (e Antonioni a torna uma presença fantasmagórica, deixando personagens e espectadores à deriva, sem nenhum esclarecimento a cerca de seu desaparecimento), tanto que Cláudia confessa a outra amiga preferir que ela esteja morta. Embora apaixonado, Sandro também não entende completamente a sua relação com Cláudia e, numa festa, ao ver uma moça parecida com Anna, ele se deixa levar por seus encantos. Cláudia os vê e foge. Ele a persegue, chorando arrependido, e ela, mesmo magoada, afaga a sua cabeça. O último plano do filme mostra ambos desolados entre o mar (liberdade) e um muro de concreto (comprometimento), metáfora que remete a um belo verso da música Todo azul do mar, de Flávio Venturini, sobre o paradoxo do amor: “tudo que eu fiz foi me confessar; escravo do seu amor, livre pra amar”.

Um ano depois, Antonioni escala Jeanne Moreau, Marcello Mastroianni e Monica Vitti para um hipotético triângulo amoroso (na verdade, quase um quadrado, pois a personagem de Moreau revela que Tommaso, personagem interpretado por Bernhard Wicki, era apaixonado por ela) no belíssimo A Noite.

Jeanne Moreau é Lídia, uma burguesa entediada casada com o escritor, igualmente entediado, Giovanni Pontano. Lídia está sempre fugindo por medo de encarar seus sentimentos. Ela sabe que o casamento está por um fio, da mesma forma que o amigo moribundo Tommaso, a quem vão visitar no hospital, mas não verbaliza nada a Giovanni. Eles vivem mais como amigos do que como um casal, agindo no piloto automático, como se fossem mortos-vivos (as atuações de Moreau e Mastroianni, com seus olhares vazios, são perfeitas). No entanto, desde que fora abordado por uma ninfomaníaca, no hospital, Giovanni demonstra ter vontade de se sentir vivo novamente. E, de certa forma, a iminência da morte de Tommaso acabou tirando Lídia da inércia. Tanto que, naquela noite, ela pede a Giovanni para aceitar o convite da festa na mansão do empresário Gherardini. Essa festa vai ser “uma brasa mora” para o casal. Lá, Giovanni conhece Valentina, filha do anfitrião, e Lídia é cortejada por um jovem. Enquanto Lídia não consegue trair o marido, Giovanni não demonstra pudor em desejar Valentina, mas a jovem sem papas na língua tem um forte senso moral e acaba freando os modestos avanços do escritor. Ao perceber o interesse do marido em Valentina, Lídia lhe diz não sentir ciúmes. Gherardini ainda tenta cooptar Giovanni a trabalhar para ele, propondo um salário bem polpudo e uma oportunidade de viver sem o auxílio financeiro da esposa (há também a tentação de ficar mais próximo à Valentina). Ainda na festa, Lídia telefona para o hospital e é informada do falecimento de Tommaso. O dia nasce, a festa termina. Lídia e Giovanni deixam a mansão de uma forma diferente da que chegaram. Agora Lídia tem coragem de dizer a Giovanni não sentir mais amor por ele, ponderando se fez mesmo a escolha certa ao rejeitar Tommaso. Ela lembra que Tommaso a colocava num pedestal, encorajando-a a estudar e ser uma mulher culta. Porém, aquele endeusamento a cansava. Ao conhecer Giovanni, à época um promissor escritor, fora arrebatada por sua autoconfiança. Então, num dos finais mais melancólicos do cinema (não satisfeito, Antonioni estraçalha nosso coração no filme seguinte), ela começa a ler uma bela carta e Giovanni sente uma pontada de ciúmes, esquecendo-se por completo que fora o seu autor. Como se procurasse resgatar a si mesmo e a um sentimento opaco, Giovanni lança-se apaixonadamente em cima de Lídia, que fica entre a rejeição e o acolhimento. Antonioni vai afastando o olhar do espectador, deixando-o na dúvida se o casal terá um recomeço satisfatório ou se o gesto é a última tentativa diante do rompimento definitivo, remetendo ao que escreveu Roland Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso, sobre o ser apaixonado querer a volta do amado, mas de um jeito diferente; pois, para dar certo, ambos precisariam mudar.

Antonioni encerra a sua trilogia com O Eclipse (1962). Diferente dos filmes anteriores, aqui ele inicia a trama com um casal que passou a noite tentando discutir a relação (o espectador não presencia a “DR”, mas o “climão” entre os personagens indica que algo vai mal). O apartamento é pequeno e o ventilador tenta abrandar um vazio que sufoca ambos. Vittoria (Monica Vitti), enfim, tomou a decisão de deixar Riccardo (Francisco Rabal). Ele não aceita o fim, prometendo mudar. Mas ela está decidida, o que comprovam suas ações simbólicas: segura uma moldura oca, abre as cortinas e janelas, e apaga as luzes. Ela sai de um ambiente inerte e desemboca numa rua movimentada e barulhenta ao procurar por sua mãe, que está no meio do prego da bolsa de valores. Ali, conhece Piero (Alain Delon). Piero é um jovem corretor inteiramente comprometido com seu trabalho, e costuma dar dicas à mãe de Vittoria. Eles começam a sair juntos, divertem-se bastante, mas Vittoria se mostra reticente aos avanços de Piero, até que marcam de se encontrar em frente a um prédio em obras (toda relação de amor é uma construção). O materialismo de Piero parece ser um entrave para Vittoria, que, oriunda da classe trabalhadora, leva uma vida simples como tradutora de espanhol, e já havia acenado não gostar da obsessão da mãe com a ciranda monetária da bolsa de valores (ela comenta não saber se aquele lugar é “um escritório, um mercado ou um ringue”). Quando ele a leva para a casa de seus pais, numa tentativa de impressioná-la, pois vem de uma família de posses, ela questiona se ele mora ali. Piero fica meio sem jeito e diz viver num apartamento pequeno. Eles têm conversas francas e tudo caminha para um namoro, mesmo com a cautela de Vittoria em se envolver mais a fundo (o primeiro beijo trocado entre eles é feito através de uma porta de vidro). Aí, Antonioni nos prega uma peça daquelas. Quando o casal se despede, marcando o próximo encontro, eles, que se mostravam sorridentes e apaixonados, trocam um abraço frio e os olhares de ambos indicam que as juras de amor eterno podem ser duvidosas, pois se dão conta de que têm valores e objetivos diferentes (mas cada um o faz apenas para si, sem verbalizar nada ao outro). No desfecho da trama, temos sete minutos de tensão, pois Antonioni mostra o vai-e-vem das pessoas próximas à esquina onde Vittoria e Piero costumam se encontrar, fazendo-nos esperar ansiosos pelo casal, que não aparece. Como sugere o título do filme, Piero pode ter sido apenas alguém na transição das emoções de Vittoria; um eclipse que poderá conduzi-la ao seu momento de brilho pleno.

Tal qual seu conterrâneo, o quadrinista Sergio Toppi, nesses três filmes Antonioni dá ênfase ao espaço/natureza, tratando-o como algo maior do que o ser humano (quase abocanhando-o), seja no perímetro urbano, nas áreas campestres ou no mar. O homem é um ser no mundo e está sujeito às suas forças externas, incluindo aí sistema econômico e político. Conforme afirmou o filósofo e dramaturgo Alain Badiou, em Elogio ao Amor, “o amor verdadeiro é aquele que triunfa de maneira duradoura, às vezes duramente, os obstáculos apresentados pelo espaço, pelo mundo e pelo tempo”; mas a falta de diálogo e a má vontade de abraçar a diferença do outro, para construir um “nós”, impossibilita o desabrochar do amor. Enquanto insistirmos na fuga, de nós e do outro, seremos apenas estranhos infelizes. E isso vale para todas as classes socais.

Milena Azevedo

Milena Azevedo

Mestre em História (Unisinos/RS), já foi professora e empresária, e desde 2005 milita no campo das histórias em quadrinhos. Atualmente segue como diagramadora, letrista e roteirista de HQs e games, com trabalhos publicados em coletâneas locais, nacionais e em Portugal e Angola, finalistas do Troféu HQ Mix, do Troféu Angelo Agostini e da categoria Quadrinho Alternativo do Festival de Angoulême (França), entre eles: Visualizando Citações - vols. 1 e 2, Fronteira Livre, Máquina Zero - vol.2, Imaginários em Quadrinhos - vol. 4, Haole (webcomic), Amor em Quadrinhos, Penpengusa, Contos Urbanos e Café Espacial #19. Vencedora do Troféu Angelo Agostini de 2019 (Melhor Lançamento) e dos HQ Mix de 2019 e 2020 (Melhor Publicação Mix e Melhor Publicação Aventura/Terror/Fantasia) com Gibi de Menininha 1 e 2. Em 2022, roteirizou as HQs “Oscar e o Pan de 87” e “Viúva Veneno”, ambas publicadas pela editora Ultimato de Bacon. Também criou a webtira Aprendiz de Bruxa, em parceria com Ju Loyola, e atualmente a parceria segue com a desenhista Mari Santtos. Em 2018, fez sua estreia na literatura infantojuvenil com o livro Dara, Dora e as estrelas, escrito a quatro mãos com Glacia Marillac.

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