Meu encontro com Deus e o Diabo

deus e o diabo

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Deus e o diabo entraram na minha vida numa noite do ano de 1984. Foram recebidos com aquele tipo de perplexidade que nunca deixa de render frutos, produzir resultados, estimular pensamentos e posicionamentos pessoais. No imaginário, o lugar desse encontro era tanto um lajedo adornado por xiquexiques quanto o alto de um morro onde se pendurava em êxtase uma legião de romeiros.

O deus que veio a mim naquele momento distendido com duas horas de duração; era um líder religioso feito à imagem e semelhança de Antônio Conselheiro. O diabo era um arquétipo de cangaceiro cuja fúria dionisíaca ia muito além do tipo característico da economia social nordestina.

O local de fato desse encontro não foi uma capela católica nem uma igreja evangélica de periferia como as daqueles tempos pré-Universal do Reino de Deus – estávamos em 1984. Nem uma praça de exercício político ou um inferninho digno da presença eventual do capeta. Foi num teatro. Um teatro situado numa rua do hospício – e só isso já deveria ter servido de indicativo do que me aconteceria naquela noite que passou a ser um dos pontos de referência da minha vida besta.

Rua do Hospício, bairro da Boa Vista, região central do Recife. Foi no Teatro do Parque, amplo, à antiga, aquele onde Beatriz Segall parou de representar certa noite em meio a reclamações sobre o calor, que me encontrei com Deus e o Diabo. Não os de Roma ou das Igrejas. Mas os do filme de Glauber Rocha, o cineasta não menos dionisíaco que se bandeou para um céu infernal ou um inferno celeste há quarenta anos.

É curioso como a efeméride travessa cai sobre nossas cabeças quase cortadas num momento em que o Brasil não poderia ser/estar mais glauberiano – até no caráter de farsa. Quem teve acesso pleno à cinematografia de Glauber não sofre menos, mas talvez entenda melhor como chegamos a tal ponto. Um ponto que sempre esteve ali, na esquina, à espera. Parece que o cinema de Glauber nunca deixou de nos soprar sobre essa possibilidade. Nós é que não captamos, abismados que estávamos com a estética mesma deste cinema tão ricamente composto, tão pleno de signos.

 

 

deus e o diabo

A profusão de signos embalados em “Deus e o Diabo” quase não me deixa dormir naquela noite do distante 84. A projeção acabou, a plateia foi pra casa e eu segui para a pensão onde morava, na Rua do Progresso – os nomes das ruas do Recife são quase estandartes de uma mapa carnavalesco. Fui andando muito devagar porque a parte do meu corpo que mais fazia esforço naquele momento não eram as pernas – era o cérebro. Levei horas cotejando partes do filme, decupando cenas, elaborando minhas próprias teorias a partir dos elementos mil que Glauber Rocha me jogou na cara usando aquela tela de cinema como se fosse um canhão de ideias, constatações, possibilidades, contradições.

O Teatro do Parque na época era usado em algumas noites como sala de cinema para exibição de filmes raros como já era “Deus e o Diabo”. Estudante do primeiro ano de Comunicação em Recife, eu tive a sorte de assistir ao primeiro grande filme de Glauber Rocha numa projeção à altura, numa tela imensa, com som de excelência. Nada disso era muito fácil naquela época. Hoje você pode ver ou rever “Deus e o Diabo” na hora em que quiser nas plataformas de streaming, DVD, os instrumentos são muitos. Naquele momento, o filme não estava à disposição com essa facilidade. Glauber Rocha, seu deus e seu diabo não poderiam ter encontrado uma maneira mais retumbante de entrar na minha formação. Quisera todos os brasileiros tivessem tido essa oportunidade, com eu e meus colegas do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco naquela noite de 84. Para efeito de comparação, lembro que somente anos depois pude ver pela primeira vez “Terra em Transe”. E vejam só: na telinha de uma TV de 14 polegadas na era do videocassete, já em Natal. E nem podia reclamar, porque ao menos tinha como conferir o filme de Glauber Rocha que se seguiu ao “Deus e o Diabo”.

Hoje, as cópias estão disponíveis, mas em compensação a cinemateca está em chamas; a arte demonizada; os canais da verdadeira expressão política propositadamente reduzidos, a riqueza cultural do país sem lugar para se mostrar com a grandeza que merece. Parece que nem às nossas contradições temos direito. O fantasma de Glauber se projeta no céu do Brasil como aquela mãe apegada do episódio de Woody Allen no filme “Contos de Nova York” cada vez que um patético brasileiro sem ideia do que seja nacionalidade veste verde-e-amarelo e sai em passeata sobre tanques imaginários.

O que diria disso tudo nosso Deus/Diabo em forma de cinema, desenhos, textos incansáveis, cartas que viraram uma biblioteca particular do pensamento brasileiro de então? O brasileiro-estandarte que foi o autor de “Deus e o Diabo” poderia achar até que não cabe mais alegoria nenhuma – hoje somos pobremente literais expressões do nosso pior retrato. Meu inesquecível encontro com Deus e o Diabo é o que me segura diante do filme deplorável que passa todos dia na nossa janela.

Tião Vicente

Tião Vicente

Jornalista e servidor público (às vezes essas duas atribuições se confundem). Nasceu por acaso em Caicó, cresceu em Parelhas, estudou em Recife e Natal, aprendeu jornalismo e juventude nesta última, cansou um pouco e mudou para Brasília, trabalhou em edição em jornal e TV até fazer um concurso público para entregar esse brilhante currículo à emissora de tevê da Câmara dos Deputados. Tem funcionado até hoje. Por fora, pratica essas infidelidades paraliterárias. Tem uma central de blogs, quase todos esquecidos (para referência, arrisque novosopaodotiao.blogspot.com).

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