por Wilson Coêlho
A obra ‘Um poeta na política: Mário de Andrade, paixão e compromisso’, de Helena Bomeny, nos remete à antiga polêmica sobre os efeitos da relação entre a sensibilidade e o poder. Trata-se de uma interessante pesquisa documental sobre a produção artística dos modernistas e, em especial, as cartas inéditas trocadas entre o poeta, cronista, crítico musical, musicista e escritor Mário Raul de Moraes Andrade (1893-1945) e o ministro Gustavo Capanema. Também há referências às cartas trocadas entre Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Hélio Pelegrini, Pedro Nava, Murilo Miranda e muitos outros.
O lançamento deste livro se dá como uma continuidade ao projeto da editora Casa da Palavra, visando o resgate e celebração dos 90 anos passados da Semana de 1922, considerada o marco inaugural do Modernismo brasileiro como um movimento decisivo da história cultural do país.
Por um lado, neste encontro da literatura (exercício da sensibilidade) com a política (estrutura de poder), nada de novo no front, considerando que desde os tempos remotos da Grécia, Platão, em ‘A República’, o poeta não era bem visto na sociedade e, por isso, o filósofo propôs a sua expulsão da pólis. Mas levando em conta as supostas contradições entre o poeta e a política, parece até redundante afirmar que – parafraseando o também grego Aristóteles – o poeta é um animal político, entendendo a poesia é uma forma de dar sentido à existência, fazer-se presença e, obviamente, ocupar um espaço no mundo.
Consciente de que a presença de um poeta na política tende a provocar contradições inerentes à vulnerabilidade deste no exercício do poder que quase sempre é escamoteado pelos artíficíos dos políticos profissionais, a obra de Helena Bomeny nos soa como uma proposta de diferenciar a maneira particular de Mário de Andrade no que diz respeito à sua trajetória intelectual e seu envolvimento no campo da política cultural no Brasil.
Primeiramente, sendo Mário de Andrade enfocado como um personagem, há uma mirada sobre os traços e formas pelas quais a sensibilidade do poeta interfere no ato de ingressar-se e atuar na política. Num segundo momento, o poeta é inserido na geração dos anos 20, compreendida como uma geração especial, cujos componentes tinham uma maneira própria de se socializar e pensar a arte na sua relação com o Brasil. Em terceiro, trata-se do reconhecimento de um campo favorável, levando em conta o grande número de intelectuais que atribuíram a si mesmos a responsabilidade de atuarem pela possibilidade de tirar o país da condição de atrasado.
Enfim, mesmo não se tratando de uma biografia, o livro se torna instigante na medida em que revela momentos e particularidades do poeta. Por este prisma, trata das experiências políticas de Mário de Andrade como o poeta que – entregando-se de corpo e alma – na administração do prefeito Fábio Prado, dirigiu o Departamento de Cultura e da Divisão de Expansão Cultural da cidade de São Paulo, de 1934-1938.
Obviamente, a autora tem todo o cuidado em demonstrar as consequências pessoais e sociológicas decorrentes da atuação pública do poeta que – de alguma maneira – provoca simultaneamente uma alteração em ambos, como uma espécie de dialética onde “nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio”, ou seja, depois da experiência, tanto a forma de fazer política quanto a forma de fazer poesia não serão mais os mesmos.
Não é por acaso que a trajetória do poeta Mário de Andrade na política brasileira, conforme Helena Bomeny, trata-se de uma história impregnada de sonhos e decepções, sem perder a noção dos símbolos dos ideais e realizações propostas pela geração modernista. Pode-se afirmar que esta aventura desvela os efeitos daquilo que entendemos, ainda de acordo com a própria autora, como o “entrecruzamento entre sensibilidade e poder”.
Contextualizando, o ano de 1922 concentrou uma gama de acontecimentos importantes que marcaram o país, inclusive, por ser lembrado como um momento de profunda crise. Além da Semana de Arte Moderna em São Paulo que, dentre outros nomes, teve como participantes Mário de Andrade, Anita Malfatti, Heitor Villa-Lobos e Guiomar Novais, 1922 também foi o ano da criação do Partido Comunista Brasileiro e da Revolta do Forte de Copacabana, “Os 18 do Forte”, que foi o primeiro movimento militar armado que se organizou no Brasil – preocupado com o descontentamento das camadas médias com os rumos políticos e econômicos da época – se propondo a tirar do poder as elites conservadoras e tradicionais.
Somado ao fato de ser considerado o principal nome do Modernismo brasileiro, tanto na esfera artística quanto política, Mário de Andrade conta a seu favor uma conjuntura rica e complexa pela qual atravessava o Brasil. Neste momento tomava-se a consciência do fracasso do movimento republicano que, mesmo tendo libertado o país da monarquia e abolindo a escravidão, até então, não havia ainda mostrado ao que viera no que dizia respeito às questões essenciais da vida comum.
Por outro lado, a Constituição de 1891 se inspirava em outros países, principalmente, nos Estados Unidos para a solução de problemas locais. Consequentemente, travavam disputa os críticos do liberalismo que restaram da ‘política dos governadores‘ com os defensores do liberalismo, tendo – ao mesmo tempo – os intelectuais se organizando em prol de reformas educacionais, bem como, intelectuais-artistas com projetos de renovação das artes e lutando por políticas públicas de incentivo à cultura.
À geração de Mário de Andrade, entendida como os que nasceram no intervalo de 1890 e 1905, era considerada como uma das eras de maior riqueza política e cultural do Brasil que, conforme Antônio Cândido, “pela coesão de equipe e amplidão de dotes”, somente poderiam ser comparáveis aos intelectuais da segunda metade do século XVIII e começo do XIX, ocasião em que o Brasil buscava construir suas bases para a construção de bases para uma independência política e cultural.
Enfim, Mário de Andrade é o poeta que desafia Platão e se recusa a abandonar a República.