Ao ler a notícia sobre as declarações do novo Ministro da Educação, sugerindo que os estudantes universitários deveriam limpar os corredores das universidades federais, separei um livro para ler, antes de começar a dividir meus estudos com a faxina recomendada por ele. Fiquei a pensar se o senhor ministro deve entender muito da problemática educacional brasileira ou talvez não saiba para que serve a educação.
Diante dessas notícias, preferi abrir a estante à procura de um bom livro, e eis que me surge de cara um certo João, não aquele “fabulista, fabuloso”, como disse Drummond, mas, um outro João nascido aqui, que também tem Andrade em seu nome. O natalense João Andrade, que produz sua poesia longe das grandes capitais.
Nascido no litoral do RN, João Andrade morou, certo tempo, ainda criança de calças curtas, no interior da Paraíba, e talvez seja esse um dos motivos de tantos espinhos em seus versos, metáforas à parte, pois aquela vivência foi um período rico para o menino João, sobretudo pelo contato com a poesia de cordel. Menino leitor, devorava tudo que via pela frente, quadrinhos, romances, que com certeza o influenciaram no seu processo de escrita iniciado ainda muito cedo.
Já crescido, João Andrade decide fazer faculdade de Letras na UFRN, evidente consequência natural do prazer de lidar com as palavras, e com certeza objetivando o aperfeiçoamento da sua escrita. E não deu outra, já bem moço deu sua contribuição, ainda que tímida, para o movimento da poesia marginal, que acontecia em Natal, e, em meados da década de 1980, João começava a participar de antologias literárias pelo país afora.
Nos anos seguintes, ocupou-se a dar aulas e paralelamente a produzir seus versos, participou de várias antologias, dentre elas, “Poetas Brasileiros de Hoje” (1987); “Novos Poetas do Rio Grande do Norte”, (1990); e “Poesia Circular”, (1996). Até que, decorridas algumas décadas, finalmente, em 2005, João Andrade surge com seu primeiro livro de poemas, “Por Sobre as Cabeças”, obra vencedora dos dois principais prêmios literários do Estado no ano de seu lançamento (Prêmio Câmara Cascudo e Prêmio Luís Carlos Guimarães). O título talvez contenha uma alusão à obra de Nietzsche “Assim Falou Zarastruta”, em que o famoso filósofo tenta pôr a cabeça por sobre os demais para conseguir descobrir aonde estaríamos indo. Ou pode nos remeter também até mesmo ao professor do John Keating, do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, em que o docente estimula os seus alunos a subirem nas cadeiras para verem a vida por outro ângulo.
Destacamos a seguir um poema do primeiro livro de João Andrade.
Andando por ermos caminhos,
quando sou eu mesmo,
estou mal acompanhado e sozinho.
POR SOBRE AS CABEÇAS
“Por Sobre as Cabeças” é um livro que traz além da solidão e angústia de um eu lírico quase agonizando, uma certa perturbação psicológica. Boa parte do livro são poemas existenciais, muitos inclusive dialogando com dramas gregos, outros de natureza filosófica, todavia sempre num tom existencialista de cunho psicológico. A propósito, Antônio Cicero, no livro “Poesia e Filosofia” reflete que, principalmente na Antiguidade Clássica, os poetas transmitiam seus ensinamentos, seus pensamentos através de poemas. Para ele a questão não é saber se alguém pode ser poeta e filósofo, mas sim que um texto pode ser simultaneamente, uma contribuição original ao pensamento filosófico e um bom poema.
Não estamos afirmando que João Andrade é um filósofo no sentido literal da palavra, porém, recorrendo novamente ao mestre Antônio Cicero “o que faz algo ser chamado de poema é o seu grau de escritura: penso que um poema realizado é um objeto dotado de um altíssimo grau de escritura”.
Para Cicero os textos técnicos, científicos, dentre outros, têm tendência maior a cair no esquecimento, ou serem modificados constantemente como, por exemplo, os dicionários, e as enciclopédias, “se não quiserem caducar”, afirma o poeta. Por isso , segundo ele, os textos cognitivos ou práticos são descartáveis, ao contrário do texto literário, que admite ficção, ou seja, o valor dele não depende de ser verdadeiro ou falso, como um livro de história, que pode conter proposições falsas e perder seu valor com o tempo. O ensaísta afirma que só não são tão fluidos ou perecíveis os textos que têm valor documental ou artístico, isto é literário.
CANTIGAS DE MAL DIZER
Depois da primeira experiência em livro, João Andrade publicou em 2010, “Cantigas de Mal dizer” (a palavra Maldizer, seccionada), livro de temática mais dolorosa, onde temos um eu lírico repleto de angústias, e fica clara a alusão ao trovadorismo, primeiro movimento literário da língua portuguesa, e sua cantigas reunidas nos cancioneiros. Uma das formas de cantigas satíricas eram as cantigas de maldizer, que tinham como principal característica a sátira e o duplo sentido. Alguma semelhança se faz sentir com “Cantigas de Amigo” de Myriam Coeli.
O segundo livro de João traz de alguma forma um pouco da psique dolorosa de Clarice Lispector, exposta, por exemplo, no romance “A Paixão Segundo GH”. Calma, caro leitor, não estou comparando João Andrade à genial Clarice, estou apenas tentando mostrar, que existem nos versos do poeta natalense e na obra da escritora, pontos em comum, algo que pode ser interpretado de várias formas e que depende do leitor para definição do seu significado: questões inquietantes, angustiantes e, ao mesmo tempo, intrigantes.
O poeta, consciente do seu papel como criador de um mundo fabulátorio, metadiscursivo, cria também pontos de contato com a realidade exterior ao seu poema. A respeito disso, assim falou o poeta Baudelaire: “Não creio que seja escandaloso considerar toda infração da moralidade, do moralmente belo, como uma espécie de ofensa contra o ritmo e a prosódia universais”. (Baudelaire apud Hambúrguer, 2007, pag.35).
É clara também, no livro de João Andrade, a presença de grandes nomes da poesia, num diálogo constante, Ferreira Gullar, por exemplo:
Metade de mim é metade
a outra metade também.
Uma metade não me cabe,
a outra não me cai bem.
(…)
Percebemos também em toda a obra poética de João Andrade, a influência de Cruz e Souza, de Florbela Espanca, Drummond, Manoel de Barros, Cecilia Meireles, Leminski, João Cabral, Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa. Estão todos lá, nas entrelinhas, para um leitor mais apurado.
POETA ATIVO DA NOVA GERAÇÃO
Entendemos que João Andrade é um dos poetas, da nova geração, digamos assim, que mais tem contribuído para a poesia produzida em solo potiguar, desmentindo a afirmação generalizada de que diferente da poesia feminina, a masculina não tem tanta força e tradição. O mesmo poderíamos dizer de bons poetas veteranos, como Jorge Fernandes, Deifilo Gurgel, Alex Nascimento, Demétrio Diniz…
O seu verso é uma espécie de grito, um discurso metafisico, que se abre para outros discursos, tornando a poesia dele universal e permanente. No entanto, reconhecemos que João Andrade, deve permanecer na nossa literatura, muito mais pelo conteúdo abordado, em suas poesias, do que pela própria forma, já que não traz novidade nesta área.
LIVRO DA PALAVRA
Em 2013, João Andrade ataca novamente, dessa vez com o “Livro de Palavra”, repleto de poemas, fazendo uma espécie de resumo de vários anos dedicados à poesia. Esta obra parece reunir, (no assunto) os livros anteriores de sua autoria, claro, com poemas novos, todavia quase sempre com a mesma temática antes abordada na maioria das vezes, nos demais trabalhos.
Outro ponto questionável é a enorme quantidade de poemas selecionados para um livro de poesia, quando o ideal seria fazer uma seleção de 40/50 poemas no máximo, uma boa média. Apesar dos pontos discutíveis, este é, sem dúvidas, o melhor e mais bem trabalhado livro de João Andrade, e demonstra certa maturidade poética em relação aos anteriores.
Evidentemente, a obra tem seus pontos fortes, como, por exemplo, no poema “Quando nasci”
Quando nasci, um anjo tísico,
desses que vivem das sobras,
apesar da tosse e dos pigarros,
disse em alto e bom som:
não serás nenhum drummond,
mas já que nasceste com a alma ferida,
vai, joão, ser poeta na vida.
Nesse poema é clara a referência ao “anjo torto” do “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade. O eu lírico reconhece suas limitações, mas segue sua sina de poeta, fazendo seus versos mesmo sem que haja um motivo especifico.
Tal poema, fez-me lembrar de um episódio acontecido conosco, em 2017. Ao dar aula numa escola da rede municipal de ensino, na periferia da capital, um aluno nos indagou, para que servia a poesia? Fui pego de surpresa pela pergunta tão peculiar a um aluno do subúrbio da capital, que ia para a escola apenas por obrigação imposta pelos pais. Quem me salvou nessa hora foi o poeta Manoel de Barros: “Todas as coisas cujos valores podem ser/disputados no cuspe à distância/servem para a poesia”. Ao menos a resposta foi poética.
João Andrade também é artista plástico, e recentemente lançou um livro de contos, “Contos de Escuridão e Rutilância” (esta última palavra nos parece excesso de preciosismo), mas isso já é assunto para outro artigo. Por enquanto, temos que nos dividir entre os deveres da rotina, estudos, trabalho, leituras, e brevemente, as faxinas sugeridas pelo Ministro da Educação.
É João, o tempo e a política brasileira, andam mexendo com a gente, sim. Mas vá, João, siga com seu verso, torto como faca, cortando sobretudo a carne dos sensíveis à poesia.