O agir ético no pós-venda cervejeiro: a ethica “cervejatorius” operandi

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Saudações, consumidores cervejeiros!

Permitam-me escrever um texto um pouco mais “filosófico” para tratar de um tema que acabamos vivenciando diariamente. Sim, vamos ver que a filosofia, às vezes, está mais perto de nós do que imaginamos. O texto de hoje será um bom exemplo para demonstrar como isso pode ocorrer “na prática”.

Aliás, o título do texto faz uma menção direta à ética (grafada em latim como Ethica, apesar de sua raiz etimológica ser grega Ethos – transliterada do original ‘ɛθɔs), que também é conhecida como a filosofia prática, já que cuida do agir humano. Vamos combinar esses elementos filosóficos com o agir humano na área cervejeira, mais especificamente, vamos falar de um momento denominado de pós-venda, que pode (ou melhor, tem) a ver com o momento seguinte ao que o consumidor adquire a sua cerveja, embora a experiência se dê durante esse interregno.

Qualquer momento após a compra da cerveja é o denominado de “pós-venda”, pois a transação comercial já se aperfeiçoou, o produto foi vendido, e a partir daí nasce a responsabilidade civil (ou melhor dizendo, consumerista) entre o cervejeiro (ou seu intermediário – fornecedor) e o consumidor, nós, os bebericadores semi-profissionais.

Claro que a ética consumerista deve ser aplicada a todos os momentos que envolvem a relação cervejeiro/cervejaria e consumidor, mas, por ora, vamos optar a analisar a interferência no “pós-venda”, para destrinchar algumas particularidades do mercado das cervejas artesanais.

off-flavor
FOTO: Blog Prazeres da Casa

Nem tudo são flores – Às vezes, a cerveja não está “boa”

Podem argumentar que “ser boa” é algo que vai variar de gosto pessoal para gosto pessoal. A questão em pauta não é exatamente essa. Estar boa, no contexto dado, é a cerveja estar sem nenhuma desqualificação, sem off-flavor, adequada ao estilo proposto, condizer com a sua publicidade, estar com os ingredientes descritos de forma clara e concisa, dentre outras coisas adstritas ao que o consumidor espera ao adquirir a cerveja.

Por off-flavor podemos entender qualquer sabor (ou aroma, ainda que a tradução direta remeta apenas ao sabor) que não deveria estar presente em determinado estilo cervejeiro. Off-flavor, portanto, não é um sabor em específico, ele varia de acordo com o estilo de cerveja em pauta. Em algumas cervejas, um sabor determinado pode ser considerado um off-flavor, mas em outros estilos ele pode ser considerado um on-flavor, isto é, um sabor desejável de ser encontrado naquele estilo em apreço.

Vamos tentar exemplificar para ficar um pouco mais claro. Uma cerveja do estilo Sour necessariamente deve ser ácida e azeda. É do estilo que ela assim o seja, caso ela não seja assim, nem no aroma e no sabor há algo de errado em sua receita, algo muito errado para que ela não tenha nenhuma das duas qualidades, ainda que de forma não dominante. Todavia, a acidez e o azedume, em outros estilos, como, por exemplo, em uma Vienna Lager, ou numa Porter, podem ser considerados off-flavors, já que não devem estar presentes.

De maneira sintética: acidez e azedume são on-flavors em Sours, mas, simultaneamente, são off-flavors em uma Vienna Lager (quiçá, em qualquer Lager). São aromas e sabores que devem estar presentes no primeiro estilo mencionado, mas não devem ser percebidos, ainda que de maneira muito sutil ou amainada nos dois últimos estilos citados. Quando há a presença de um off-flavor a cerveja possui um problema gravíssimo e a reparação ao consumidor deve ser imediata.

Nesse passo, ser uma “cerveja boa”, não significa que ela agrada subjetivamente ao paladar do consumidor, pelo contrário. A avaliação de uma boa cerveja, na premissa dada em termos consumeristas, quer dizer que ela não possui nenhum defeito flagrante. Não possui um off-flavor, não está flat (isto é, sem carbonatação alguma), não foi contaminada por bactérias indesejadas, não está com a lata amassada ou com a tampa soltando gás, dentre outros elementos básicos.

Portanto, uma boa cerveja não é uma cerveja, necessariamente, gostosa, ela pode até não ser uma cerveja estupenda, mas basta que ela não tenha uma claudicância crassa, que a invalide comercialmente. O padrão mínimo de qualidade deve sempre ser mantido.

Lidando com o consumidor

Quando eu era criança adorava o desenho do Pica-pau. Desde cedo, assistindo um dos episódios matreiros do nosso anti-herói infantil preferido, uma das frases mais repetidas, até exaustivamente, era: o cliente tem sempre razão. Atualmente, no sistema legal brasileiro, com o advento do Código do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), não temos textualmente essa expressão, mas, ouso dizer, que temos algo muito semelhante, semanticamente falando.

Não quero dizer que o consumidor tenha o direito de abusar do seu direito de estar certo, mas, ele tem o direito de ser considerado hipossuficiente (econômica e juridicamente) na relação estabelecida com o fornecedor da mercadoria, do produto ou do serviço. Dito de outra forma, o consumidor é considerado, por parâmetros legais, menos capacitado na relação encetada e tem direito ao reconhecimento de sua vulnerabilidade no mercado de consumo (essa é a inteligência exarada pelo artigo 4º, inciso I, do supracitado Código).

A normatização legal em apreço significa dizer que o consumidor tem direito a ser tratado dignamente, tem direito a uma ampla gama de informações em referência aos produtos ou serviços que adquire ou pode vir a ter acesso. Transportando esse entendimento ao mercado cervejeiro, quer se dizer que, no pós-venda, o consumidor deve ser tratado de forma a ser reparado por eventuais inconsistências nas cervejas vendidas, e deve ter direito à reposição ou indenização em virtude dos flagrantes defeitos, porventura encontrados, nas cervejas que degustar.

Claro que nem todo consumidor é tecnicamente treinado para encontrar toda uma gama de off-flavors possíveis e imagináveis, tampouco todos os consumidores são capazes de identificar e reclamar por tais inconsistências. Todavia, o ponto fulcral é, sempre que encontrado o defeito e reportado à cervejaria, é de sua alçada e de sua competência tentar reparar de modo imediato o infortúnio, sanando assim, qualquer irregularidade que possa existir na relação de consumo.

Como agir e como não agir (O agir ético em destaque)

Ao longo de vários anos como consumidor de cervejas já encontrei muitas cervejarias que não souberam agir diante de um infortúnio e outras que agiram de forma exemplar quando alguma de suas cervejas vendidas não estava boa. Algo que, na maioria das vezes, era bem simples de resolver acabava se tornando um tormento para o consumidor (eu).

Assim, dialeticamente, buscando mostrar o lado bom e o lado ruim, vou dar alguns exemplos pessoais em que fui bem atendido, com grande prezar pelo agir ético em conformidade, e alguns outros exemplos diametralmente opostos, nos quais não fui tão bem recepcionado no pós-venda cervejeiro.

Exemplificativamente, eu já passei pelo episódio da Rizoma II da Dogma que simplesmente explodiam mesmo estando na geladeira, também adquiri um dos lotes da Rizoma Double Dry Hopped que estava simplesmente oxidado e com um off-flavor terrível de isovalérico (o qual pode ser resumido como sendo um cheiro de esparadrapo e de chulé e um gosto plastificado). Em ambos os casos, a cerveja procedeu de maneira impecável, repôs o quantitativo de cervejas adquiridas e ainda me mandou um brinde (uma taça modelo Passion, algo raro na época em que o e-commerce ainda engatinhava no Brasil e não se tinha taças da Dogma tão facilmente no Nordeste).

Há alguns e-commerce que possuem um tratamento exemplar em sua lida com o consumidor. Exemplificativamente, gostaria de citar o Empório Citra, com seu atendimento excepcional e sua pronta resolução para infortúnios no pós-venda, como latas amassadas, cervejas com off-flavors, e até mesmo cervejas que explodem. Todas são imediatamente trocadas ou o dinheiro pago é devolvido.

Todavia, nem todas as experiências cervejeiras que não são tão boas assim recebem o mesmo tratamento (outrora descrito). Nem todas as cervejarias (ou e-commerce, a depender da situação vivida) estão em plena adequação às regras consumeristas a serem seguidas para deslindar as situações da melhor maneira possível para o adquirente das cervejas.

Posso dizer que já houve algumas situações de tratamento indiferente, mas que não gerou nenhum dano ou constrangimento. Para trazer mais um exemplo, gosto sempre de mencionar o caso do antigo site do Wbeer, o qual tinha uma forma peculiar de lidar com seu pós-venda. Quando o cliente entrava em contato relatando que o produto estava fora do padrão de qualidade era enviado um questionário denominado “QUESTIONÁRIO – SOMMELIERS | WBEER” (que eu ainda guardo no meu e-mail) para ser respondido, no qual eles diziam “precisar de informações adicionais para entendermos melhor o ocorrido”.

O questionário direcionado ao consumidor cervejeiro era composto pelas seguintes indagações:

“• Observou algo fora do padrão em relação à vedação da garrafa?

  • Como você armazenou/acondicionou a cerveja em sua casa?
  • Houve algum tipo de exposição intensa e continua a forte luz?
  • Ocorreu algum acidente no manuseamento, como quedas, afrouxamento de tampas ou rolhas?
  • Em quanto tempo, desde sua compra, você fez o consumo da cerveja?
  • Em que condições foi servida a cerveja, no que diz respeito à temperatura e o recipiente para consumo?
  • Após aberta a garrafa/lata, quanto tempo em média levou para consumir o líquido?
  • Houve harmonização com a bebida? Se sim, poderia informar qual foi o acompanhamento?
  • Você já conhecia esse rótulo ou já havia consumido anteriormente? Se sim, poderia nos informar alguma diferença percebida entre as duas bebidas?
  • Qual era o aspecto visual quanto ao corpo da cerveja? (Cor, densidade, apresentava sedimentos na garrafa, formação de espuma)?
  • Quanto ao olfativo, quais foram os aromas apresentados?
  • No paladar, como a cerveja se comportou?”

Acredito fortemente que poucos consumidores são capazes de responder com uma precisão digna de um juiz do BJCP todas as perguntas contidas no questionário acerca do produto fora do padrão de qualidade. Ademais, não bastava o consumidor ter conhecimento técnico para responder os questionamentos, era necessário que, ou ele tivesse uma ótima memória para gravar todos esses detalhes, ou que ele tivesse tomado todos esses apontamentos enquanto degustava sua cerveja fora do padrão de qualidade.

Eu não me senti particularmente ofendido quando recebi cervejas fora do padrão de qualidade, mas tive que responder ao questionário, tanto que todas elas foram repostas pelo site fornecedor. Mas, nota-se que esse tipo de questionário, técnico e exacerbadamente específico, intimida o consumidor e acaba invertendo o ônus da prova da não adequação da qualidade do produto. Ou seja, através dessa forma de agir do fornecedor, finda cabendo ao consumidor provar que o produto estava abaixo do padrão de qualidade. Sendo-lhe imposta a necessidade de responder às perguntas complexas. Ao passo que não cabe ao fornecedor reparar de imediato e solucionar o caso de um produto fora do padrão (como preconiza o Código de Defesa do Consumidor).

Nessa mesma esteira, mas descendo mais um degrau, já tive experiências péssimas no pós-venda cervejeiro, hipóteses que a cervejaria ignorou totalmente a reclamação, ou até mesmo quis insinuar que havia má-fé em reportar o produto fora do padrão de qualidade, já que as cervejas deles eram “excelentes” e “ninguém nunca havia reclamado”.

Engraçado perceber que o pior atendimento geralmente vêm de cervejarias pequenas ou pouco conhecidas (embora algumas “grandes” artesanais não tratem tão bem o consumidor). Fazem de tudo para não repor o material desqualificado que foi posto no mercado (questionam a sua má-experiência cervejeira, pondo em xeque o seu crivo), por vezes ignoram, e noutras simplesmente dizem que você provou errado. Justamente aquelas que deveriam tratar melhor o consumidor são as que vilipendiam a sacralidade do seu direito, subvertendo o adágio do cliente tem sempre razão.

Tal perspectiva é agravada quando a cervejaria (ou fornecedor) pressupõe de antemão que o consumidor está errado e que o produto é inexpugnavelmente maravilhoso e está em plena conformidade com o padrão de qualidade de excelência. Algo que todos nós sabemos que nem sempre procede. Tratar bem o consumidor não é favor, é a lei, é a regra! Tem cervejaria que pensa que está fazendo um favor por deixar você consumir o néctar precioso deles (pagando caro por isso, saliente-se – contém ironia).

Saideira

O ditado diz que “não existe mais bobo no futebol”, eu acrescentaria: “…e nem no mundo da cerveja artesanal”. O que vemos, algumas vezes, são tratamentos desproporcionais com o consumidor, como em alguns casos narrados acima. Algumas cervejarias e fornecedores não estão preparados eticamente para lidar com o pós-venda, e, por vezes, acabam piorando uma experiência do consumidor que já não tinha sido das melhores, em virtude de produtos abaixo do padrão esperado de qualidade.

Repetiremos sempre: o consumidor tem sempre razão!

E você, caro leitor? Já passou por alguma situação ruim ou constrangedora no agir ético do pós-venda de alguma cervejaria ou fornecedor de cervejas?

Se sim, responda nos comentários abaixo o seu relato/desabafo.

Recomendação musical para degustação

A tônica do artigo de hoje é o agir ético, como isso é importante no relacionamento entre o cliente e as cervejarias e fornecedores. A música escolhida, portanto, tem “ética” em seu título: Ethica Odini, da banda de Progressive Black/Viking Metal norueguesa Enslaved (ela já tinha aparecido nesse espaço antes, na publicação da retrospectiva 2020, mas, hoje, ganha mais destaque!).

Apreciem, e se for o caso, clamem por vossos direitos de consumidor!!

Saúde!


FOTO: Blog Tricurioso

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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