Entre cervejas e flores (e mais flores nas cervejas!)

flores na cerveja

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Saudações, cervejeiros floristas!

Se fôssemos seguir as premissas da malfadada “lei de pureza alemã”, aquela que parece um trava-língua em português, a Reinheitsgebot, teríamos cervejas mais simples, com apenas água, malte e lúpulo (e obviamente, levedura). Assim, obteríamos cervejas mais “naturais”, apenas com elementos vegetais presentes.

Mais uma vez, não vou discutir a validade ou os critérios atuais de prevalência dessa vetusta normatização cervejeira, até porque ela sequer está em vigor (mas tem quem acredite que ela esteja).

O debate hoje giraria em algo que transcenderia a “pureza”, tão perseguida pela Reinheitsgebot, já que vamos falar sobre a presença de outros vegetais que podem ser ingredientes (ou, nessa premissa básica, adjuntos) do conjunto cervejeiro. Isso por si só já seria uma violação à regra normativa.

O ponto é, a lei de pureza, de uma forma ainda que não-intencional (já que seu intento era tributário, e não sensorial), prezava por um perfil mais naturalista das cervejas.

No texto de hoje, vamos tratar da inserção de outros vegetais pouco usuais nas cervejas, em específico, sobre flores.

A reflexão de hoje teve como ponto de partida a série da cervejaria Croma, denominada The Leaf. Uma série de quatro cervejas com adições de diferentes plantas, que, quando comparadas com a cerveja base (sem os adjuntos vegetais), dá para perceber o toque especial que as plantas foram capazes de proporcionar às cervejas.

Então, vamos abrir a mente para poder apreciar melhor cervejas diferentes, que contenham alguns elementos vegetais pouco usuais, mas que podem representar um grande avanço em termos de variação e de combinação sensorial nas cervejas.

Nossa conturbada percepção sensorial das plantas

Confesso que eu mesmo fui uma criança que tive muitas dificuldades em lidar com alimentos de origem vegetal, como, plantas em geral, tais quais, sementes, tubérculos, folhas e frutas. O que temos atualmente descrito como paladar infantil é um resumo da rejeição construída socialmente a esses aromas e sabores, denominados, usualmente, como pouco acessíveis.

Por óbvio que, essa rejeição particular das crianças por alimentos mais amargos, em detrimento da preferência pelos doces em um primeiro plano, e pelos salgados, secundariamente, não é algo inato. Ninguém nasce com essa rejeição, ainda que nossa percepção vá se alterando em termos de intensidade à medida que vamos crescendo.

Fomos acostumados a preferir sabores mais simples, advindos de uma saborização artificial dos alimentos.

O importante a ser ressaltado é que nossa relação conturbada com as plantas (os vegetais de um modo geral) é uma construção social. Mais especificamente, é uma construção alimentícia do capital, em detrimento de uma oferta alimentícia mais ampla. E isso acaba reverberando, pasmem, no nosso gosto cervejeiro também.

Somos bombardeados por temperos prontos e por uma gama de alimentos processados e modificados industrialmente. Ao longo de muitos anos, além de sermos doutrinados desde a mais tenra idade a nos habituarmos a eles, temos como resultado que nossa percepção sempre vai tender e preferir ao “gostinho do enlatado”.

Isso ocorre ao invés de termos uma predileção mais ampla, e que envolva todas as nuances de gosto, incluindo as tonalidades mais amargas do espectro. Nos acostumamos com aromas e sabores mais simples e rejeitamos os mais “esdrúxulos”, geralmente os advindos das plantas que não nos são familiares.

Em termos de percepção cervejeira, ficamos adstritos às cervejas pasteurizadas, que plastificam o gosto, e um sem número de adjuntos, que por vezes, são colocados na forma de “essência”, o que torna ainda mais artificial a experiência. Isso sem mencionar a adição massiva de lactose em vários estilos cervejeiros, responsável por muitos desastres de natureza intestinal em quem se dispõe a exagerar desses tipos de cervejas.

E no final das contas, rejeitamos e não conhecemos, cervejas que se valem de outras plantas, vegetais e flores, principalmente.

Cervejas e Flores

Por mais que exista o ditado popular em dizer que “nem tudo são flores”, a verdade é que temos um contato muito restrito com as flores. Pouco conhecemos, seja em termos visuais, quer seja em termos sensoriais as flores. Se tudo fosse flores, nós a conheceríamos bem melhor do que de fato temos noção sobre elas.

Um dos padrões de análise das cervejas, de um modo geral, é o descritivo de aroma e de sabor denominado de floral. Mas, que floral é esse? Quando nem sequer sabemos identificar uma flor e seu cheiro, por exemplo?

Isso é algo que acaba recaindo no senso comum das descrições de algumas análises sensoriais, mas que indica uma deficiência de identificação do que é o floral.

Claro que o lúpulo, em termos técnicos, é uma flor (ou é extraído de uma flor, para ser mais preciso), mas os compostos orgânicos por ele gerados remetem (ou ao menos podem remeter) a outras flores. Difícil é “alguém” saber dizer a quais flores…

Além disso, é possível, e eu diria recomendável em termos de exploração cervejeira, a utilização de outras flores nos conjuntos que formam cervejas. Em alguns estilos essa pedida é mais recomendável que em outros.

Percebendo o floral nas cervejas

Em uma IPA, para usar o exemplo mais acessível em termos de acessibilidade na descrição, é bem comum de se notar elementos lupulados que remetem a um perfil cítrico, por vezes, a frutas mais maduras. Nas IPA’s com uma lupulagem mais “antiga”, em que se usavam lúpulos americanos de primeira geração, como Amarillo, Cascade, Simcoe, Columbus, Centennial, e Galena (sendo esse último bastante floral) notas mais resinosas e herbáceas eram mais fáceis de serem assimiladas.

De toda maneira, em termos de primeiro contato, e também de primeira expressão descritiva, o floral sempre ficava relegado a contornos mais genéricos.

No máximo era atestada a sua presença (ou a sua ausência), o critério a ser utilizado era a intensidade de sua percepção, e nunca uma forma descritiva mais pormenorizada, que fosse capaz de mencionar uma flor com a qual se poderia assemelhar o aroma ou o sabor daquela cerveja. Isso não é um “erro” de quem aprecia (ou analisa), e sim uma dificuldade que temos por realmente termos pouco contatos com as flores, e não ser fácil identificá-las nas cervejas.

A adição de flores nas cervejas supre essa lacuna, pois torna o floral mais destacado, ao mesmo tempo que possibilita o seu conhecimento direto. Todavia, são poucas as cervejarias que ousam fazer isso, já que o risco é altíssimo. Não é fácil dosar a sua percepção no conjunto final.

Ao adicionar diretamente flores nas receitas, corre-se o alto risco de fazer uma cerveja com aroma e sabor de sabão Omo. Infelizmente, de modo exemplificativo, é o que tende a acontecer quando se usa, por exemplo, a lavanda de uma forma muito acentuada, de forma que a combinação fica um tanto quanto forçada.

Outro problema com a percepção dos elementos florais é que estamos acostumados a reconhecê-los por meio de essências colocadas em produtos de limpeza industrializados. A adição de extratos naturais diretamente na cerveja tem um resultado muito diferente de um amaciante, mas nossa memória (afetiva) tende a ser um tanto quanto traiçoeira na forma de associar os aromas (e possíveis sabores, embora eu suponho que ninguém deliberadamente tenha lambido sabão ou bebido amaciante).

Algumas flores nas cervejas: Jasmim, Lavanda, Hibisco

O poder da inserção floral na cerveja é fabuloso. Para quem se rende à criatividade da cultura cervejeira artesanal, essa assertiva é inarredável.

Infelizmente, pelos fatores já explanados preteritamente, possuímos um leque de conhecimento sobre aromas e sabores de flores bem restritos. Quando muito, temos alguma noção estética (no sentido de embelezamento) de sua colocação, todavia, uma apreciação sensorial de paladar e olfato fica prejudicada, de modo geral.

Por causa dessa particularidade, a inserção floral nas cervejas acaba sendo diminuta, e, por vezes, restrita a algumas combinações mais conhecidas, e que apresentam bons resultados.

Os exemplos, que serão mais bem destacados no decorrer do texto são: o jasmim, a lavanda e o hibisco.

A versatilidade do jasmim nas receitas cervejeiras

O jasmim tem um perfil floral bem leve, suavemente doce e refrescante, com contornos herbáceos. Ele também possui uma boa integração em receitas cervejeiras pelo fato de ser uma flor que dá tons que combinam muito bem com conjuntos cítricos.

Sua percepção floral mais suave dá espaço a receitas que, ou sejam mais lupuladas, ou que consigam trabalhar bem com contornos de frutas cítricas em geral, ou até mesmo com cervejas que tenham alguma relação com percepção sensorial de uvas.

De modo bem amplo, o jasmim é uma flor que pode ser muito bem combinada com esterificações mais demarcadas nas cervejas. Isso lhe dá uma vantagem competitiva bem ampla, já que na percepção sensorial não existe o conflito entre esses dois perfis (floral x frutado).

O floral do jasmim não se sobrepõe ao frutado (cítrico, na maioria das vezes), da mesma forma que a “citricidade” acaba sendo um bom complemento ao seu floral.

O adocicado sutil e o floral marcante da lavanda

A lavanda, também conhecida como alfazema, é uma flor que já é bastante utilizada na culinária francesa, e tem um uso bastante versátil também, já que vai bem tanto em receitas doces quanto salgadas. Ela é uma das integrantes do conjunto gastronômico denominado de Ervas de Provance, verdadeiro ícone do requinte francês na cozinha.

Em termos de aplicabilidade na cultura cervejeira, a lavanda costuma ser utilizada com parcimônia (ou assim deveria), uma vez que tem a particularidade de ter seus aromas e sabores facilmente confundidos com sabões e amaciantes, quando utilizada de forma exagerada. Todavia, é plenamente cabível o seu uso de modo a dar uma melhoria em alguns estilos de cerveja.

A lavanda costuma conferir aromas e sabores doces e florais, que por vezes podem ser confundidos com a violeta (outra flor). Nas receitas cervejeiras, ela também é capaz de acrescentar compostos fenólicos bastante singulares aos conjuntos.

Seu uso, quando bem efetuado, de modo discreto e sutil, é capaz de potencializar os elementos florais da cerveja. O seu uso deve ser feito com bastante cuidado, já que o perfume exalado pela lavanda, na cerveja, é bem marcante.

Quando utilizadas de forma acertada na cerveja, é praticamente inconfundível o seu aroma e o seu sabor, já que lembra vastos campos floridos de alfazema ao serem tocados pela brisa da tarde.

O hibisco e a popularização do uso de flores nas cervejas

Das flores mencionadas no texto até agora, o hibisco é a mais popular delas, tanto em termos de sua utilização em “chás” (tecnicamente, infusões, e não chás) para dietas, quanto como pela sua maior utilização em receitas cervejeiras.

O hibisco tem sido bastante utilizado em cervejas do estilo Saison. Os resultados obtidos são bastante satisfatórios, sendo ele um adjunto que combina bastante com o perfil mais rústico desse estilo cervejeiro. Todavia esse não é o único estilo que ele se encaixa, sendo possível sua utilização em vários outros, como Sour’s, Witbier’s, e até mesmo em Dubbel’s.

Em termos de apreciação sensorial, o hibisco é bastante aromático e exala um perfume singular. Ele é bastante sinérgico, ainda que menos combinante que o jasmim, por exemplo. A mencionada flor tende a ser um bom pareamento para cervejas que possam puxar para notas de frutas vermelhas e que exibam um fenólico destacado, ainda que não muito forte, com notas de canelo ou cravo (ou ambas).

Esse adjunto também combina bastante com conjuntos cervejeiros mais amargos, nos quais ele consegue ser um ótimo contraponto floral. Quando combinado com outras notas frutadas, que podem ser as frutas vermelhas, ou até mesmo um perfil vínico (puxado para uva), ele também se sai muito bem complementando.

Apesar de não ser tão versátil, ele acabou se popularizando como uma das flores (além da flor de lúpulo, obviamente) mais utilizadas nos conjuntos elaborados na cultura cervejeira mais recente. Sua popularidade atesta a capacidade que as flores, em geral, possuem para integrar boas cervejas, cervejas que possam desafiar a criatividade dos cervejeiros artesanais.

Saideira

Para não dizer que não falei de flores…

Aliás, basicamente, só falei disso hoje!

O que é uma coisa boa, já que fomenta uma percepção sensorial um tanto quanto que relegada ao segundo plano na cultura cervejeira.

Ainda temos muito o que avançar na utilização de flores na culinária e na gastronomia de modo geral. Existe quase que um abismo entre o que conhecemos e o que as flores podem oferecer em termos alimentícios.

É uma barreira cultural criada por anos e anos pelo capitalismo industrial que nos fornece apenas sabores enlatados e artificiais.

Superar esse óbice é algo que pode começar a ser executado pela cultura cervejeira, e pela inserção cada vez maior de flores nas receitas. Por que não sonhar com esse mundo melhor?

Definitivamente, as flores tem muito a nos acrescentar em termos de percepção sensorial, muito mais para além de seu mero embelezamento de ambientes.

Recomendação Musical

Confesso que eu tive um sem número de possíveis indicações musicais para o texto de hoje. As flores são mais apreciadas na música que na culinária ou na cultura cervejeira, pelo visto…

Todavia, a escolhida é a canção Flores, do grupo nacional de rock Titãs.

Acredito que quase todo mundo conhece essa, e quem não conhece, fica a dica.

(E não, eu jamais colocaria a música Flores de Luísa Sonza e Vitão como recomendação musical).

“As flores de plástico não morrem…”

Saúde!


FOTOS: publicadas no blog Confraria Maria Bonita

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

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A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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