Do documentário “Elis & Tom”

Elis & Tom

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Elis Regina

 

Difícil descrever a relação construída com alguns ídolos e as emoções que nos invadem em determinadas situações. São diversos os sentimentos que nos envolvem quando estamos diante de certas obras e/ou artistas. E foi com essa sensação que saí do cinema depois de assistir o aclamado filme sobre os bastidores da gravação de um disco histórico da Música Popular Brasileira. Estou falando do documentário “Elis & Tom: só tinha de ser com você”, dirigido por Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay. O roteiro é de Nelson Motta.

O disco foi gravado em 1974, em Los Angeles, nos Estados Unidos, onde morava o autor de “Águas de março”, “Garota de Ipanema” (em parceria com Vinicius de Moraes) e outros clássicos da MPB. Estas são algumas das canções do álbum, que está disponível na internet: “Soneto de separação”, “Corcovado”, “Fotografia”, “Chovendo na roseira”. O disco “Elis & Tom” foi um presente de André Midani (1932-2019), executivo da Polygram na época. O motivo: Elis estava completando dez anos na gravadora. O álbum tem 14 faixas e foi um sucesso de vendas. Estamos falando de um disco que é aclamado não só no Brasil, mas também no exterior.

Voltemos ao documentário. Ao sair do cinema é como se eu tivesse acabado de retornar de uma longa viagem. Uma viagem em que estive acompanhada de três amigas, Lorena Abdon, Monalisa Medeiros e Valeska Limeira. É mesmo inexplicável o arrebatamento que nos provocam algumas obras de arte. Estava me sentindo uma personagem daquele enredo. Quem sabe uma jornalista e/ou escritora que estava acompanhando Elis em sua viagem a Los Angeles para gravar um disco com ninguém menos que Tom Jobim. Meros devaneios tolos…

Acompanhada de seus músicos, inclusive do então marido, o pianista e arranjador César Camargo Mariano, Elis partiu para gravar o disco idealizado por Roberto de Oliveira e eternizar nossa música em um dos álbuns mais icônicos da MPB. Com a força do seu canto e sua forma única de interpretar, Elis aparece de um jeito tão bonito, forte e sensível ao mesmo tempo, nos bastidores da gravação, e deixa ainda mais apaixonados os admiradores arrebatados por sua força, seus paradoxos, mas sobretudo por sua entrega e sensibilidade quando estava no palco. Quando ela canta, desnuda a alma da gente. É um canto forte, potente. Um canto rasgado, cortante, pulsante, dolorido. Impossível não se emocionar perante a grandeza de Elis. No documentário, temos a chance de enxergar uma outra Elis. Uma mulher mais silenciosa, atenta aos ensinamentos do mestre. O documentário nos permite conhecer uma Elis mais serena, contemplativa. As múltiplas faces do artista.

Foram quase duas horas passeando com Elis e Tom pelas ruas frias de Los Angeles, assistindo aos ensaios, escutando as conversas de bastidores e aprendendo sobre notas, arranjos e tantos conceitos do mundo da música que nos aproximam de dois nomes icônicos da MPB e dos demais artistas que participaram da gravação do disco. E não estamos falando de mais um encontro, de mais uma parceria. Estamos falando de um disco que foi um divisor de águas na carreira de Elis. E, como não poderia deixar de ser, também estão registrados no doc momentos de tensão e alguns desentendimentos entre os músicos, alguns deles causados por divergências de estilo/concepções musicais. Os artistas são mesmo seres complexos, incompreensíveis (?). Houve um momento em que Elis quase desistiu de gravar o disco, tantos eram os desentendimentos com o maestro, como também era conhecido Tom Jobim. César Camargo Mariano também precisou ter paciência comas exigências de Tom Jobim. Mas no final tudo deu certo. Ainda bem. Impossível imaginar a música brasileira sem o álbum “Elis & Tom”. Segundo o produtor cultural João Marcelo Bôscoli, filho de Elis, “ele quase se transformou no maior disco não feito da história”.

Que alegria poder conhecer os bastidores dessa história! Alegria que tem sido vivenciada por milhares de espectadores Brasil afora. O documentário já foi visto por mais de 40.000 pessoas, segundo a revista Veja, um número considerado extraordinário para esse tipo de produção cinematográfica. Eleito Melhor Filme Brasileiro na 46ª Mostra de São Paulo, o doc foi exibido no Festival do Rio 2022 e na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A produção também foi apresentada no Marché du Film do Festival de Cannes.

Li n’O Estado de Minas que o filme terá desdobramentos: estão sendo planejados para 2024 um livro e uma exposição imersiva. A exposição contará com material inédito das gravações. O objetivo da exposição é proporcionar ao visitante a sensação de estar no estúdio de Los Angeles onde o disco foi registrado, em 1974. Os fãs agradecem. Outra boa notícia é que o filme vai disputar uma vaga entre os possíveis indicados ao Oscar de 2024 na categoria de melhor documentário.

Além da rotina de gravação do disco em si, o documentário mostra um pouco da carreira das duas estrelas, antes e depois do álbum, enaltecendo a importância de ambos não só para o Brasil, mas também para o cenário internacional. Vários depoimentos de artistas norte-americanos reforçam as qualidades e, principalmente, a genialidade dos dois artistas. É muito emocionante ouvi-los falar da nossa Elis e do nosso Tom de uma forma tão sensível. São depoimentos cheios de respeito e admiração pela música brasileira.

Em entrevista ao portal Terra, Roberto de Oliveira reforça a importância do documentário para a cultura brasileira e nos lembra que as novas gerações terão acesso a Elis e Tom por meio desse trabalho. Ele afirma que qualquer pessoa que não tenha convivido com esses dois artistas pode entender a importância deles. Isso me fez lembrar uma cena interessante: Gabriel, um menino de onze anos, pediu para acompanhar a mãe no dia do filme. Ela disse que o menino não entenderia muito bem o filme, que não era pra sua idade e tals. No mesmo dia, enquanto voltava da escola, Gabriel cantarolou uma música de Vinicius de Moraes que aprendera no Tik Tok. A música: “Onde anda você”, uma composição de Hermano Silva e Vinicius de Moraes. Achei a coisa mais linda essa cena. Gabriel é filho da minha amiga Lorena, que também é mãe de Heitor, de três anos.

Voltemos aos protagonistas do filme. Dono de uma voz suave e harmoniosa, compositor, músico, pianista e um dos pais da Bossa Nova, Tom Jobim é considerado por muitos um gênio. O maestro soberano, como o nomeia Chico Buarque em sua canção “Paratodos”, teve uma brilhante carreira internacional. Em 1962, apresentou-se no Festival de Bossa Nova, no Carnegie Hall, em Nova York, com outros músicos brasileiros. Gravou com Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, entre outros nomes do pop e do jazz. Embora tenha nascido no Rio de Janeiro, Tom Jobim passou boa parte de sua vida em Nova York, nos Estados Unidos, onde faleceu, em 1994.

Também chamada de Pimentinha (apelido que ganhou de Vinicius de Moraes), Elis Regina nasceu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 1945, mas ainda na juventude mudou-se para o Rio de Janeiro, onde construiu uma carreira sólida que a conduziu para programas de televisão, turnês internacionais e uma sólida parceria com diversos artistas da MPB, revelando inclusive grandes compositores com suas interpretações magistrais. Foi o caso de Belchior, Milton Nascimento, Aldir Blanc, João Bosco, entre outros. Comparada a Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday, Elis vendeu quatro milhões de discos em 18 anos de carreira. Partiu em janeiro de 1982.

Voltando ao documentário. O encontro com Elis & Tom, naquela tarde de sábado, me fez lembrar um outro encontro. Meu encontro com Elis em sua biografia definitiva. Refiro-me ao livro “Nada será como antes” (Master Books, 2015), de Júlio Maria, que li no início do ano. Um daqueles livros de tirar o fôlego. Um livro arrebatador. Uma obra que tocou fundo a minha alma, principalmente por me ensinar que o ser humano não pode ser limitado a certas definições. Essa foi uma das maiores lições que aprendi com a história de vida e o legado artístico de Elis Regina.

Com seu jeito cativante e sensível de escrever, Júlio Maria me ensinou a enxergar as dores que afligiam Elis, mas também, e principalmente, a grandeza do seu canto e a sua importância como cidadã brasileira que jamais calou perante as injustiças do nosso país, mesmo quando vivíamos uma época de medo, repressão. Ao assistir o documentário, é como seu tivesse conhecendo de fato uma artista que muito admiro. É como eu tivesse a oportunidade de sentar num café, ou mesmo num bar, e, com meu inseparável caderninho, tomar nota de um papo inesquecível com ninguém menos que Elis Regina. Foi exatamente assim que eu me senti durante os 100 minutos em que estive naquela sala de cinema. Lorena também leu a biografia de Elis. Aliás, esse foi um dos motivos pelos quais ela me convidou para assistir ao documentário. Ela adora conversar sobre suas leituras. Ainda bem que aceitei o convite, mesmo que alguns dias depois.

Após o filme, eu e as meninas sentamos num espaço ao livre do shopping para comer uns petiscos, e conversar um pouco. Os pastéis fritos e os bolinhos e bacalhau foram acompanhados por uma água com gás e suco de limão, receita que aprendi com Lorena em nosso encontro anterior, no mesmo local. Naquela tarde, falamos de livros, de música, de projetos acadêmicos/profissionais, de viagens…

Ao chegar em casa, ainda extasiada com aquela “viagem”, fiquei pensando na grandeza da música brasileira e nas qualidades da nossa MPB. Senti um imenso orgulho dos nossos artistas. Senti uma imensa alegria por ser brasileira e pelo privilégio de poder desfrutar de um momento como aquele, um momento de reverência à música, aos artistas brasileiros e aos profissionais envolvidos nessa cadeia mágica que produz a imagem, o som, o audiovisual…

Se pudesse, enviaria um agradecimento a Roberto de Oliveira, pela sensibilidade de produzir um documentário que eterniza um momento único da MPB e nos presenteia com esse encontro de gênios. Obrigada, Roberto, por nos permitir esse encontro com Elis & Tom! Obrigada por eternizar a música brasileira com seu documentário!

Andreia Braz

Andreia Braz

Escritora e revisora de textos.

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8 Comments

  • Andreia Braz

    Edilson querido,
    agradeço a leitura generosa da crônica e também por acompanhar meus escritos aqui no Papo Cultura.
    Fico feliz por saber que gostou do texto, amigo. Foi emocionante assistir o documentário e partilhar minhas impressões com os leitores.
    Abraços.
    Abraços.

  • EDILSON ALVES DE CARVALHO

    Como sempre, mais um texto maravilhoso dessa grande Andreia. Dessa vez, sobre um acontecimento histórico da MPB que juntou Elis e Tom. O texto, em sua completude, é um estímulo para eu não deixar de ver o filme. Muito obrigado amiga Andreia.

  • Andreia Braz

    Patrícia,
    fico feliz por saber que você gostou da crônica. é uma alegria compartilhar minhas impressões do mundo/da arte com os meus leitores. isso dá um sentido único a minha existência.
    Quanto ao documentário, ouvi dizer que já está disponível na Netflix. Aqui em em Natal, ainda está sendo exibido no cinema do Praia Shopping.
    Abraços.

  • Andreia Braz

    Leila Simone,
    Elis é a maior artista da música brasileira e deve ser reverenciada sempre. Sua obra é imortal.
    Parabéns pelo seu talento, querida! Deve ser emocionante ouvi-la interpretar Elis Regina.
    Abraços.

  • Andreia Braz

    Simone, eu também tenho esse desejo quando leio certos livros, escuto algumas canções ou assisto determinados filmes.
    Abraços.
    Andreia

  • Patrícia

    Maravilhoso o seu texto. Parabéns ! Eu e meu filho mais velho somos ditadores da Elis e de Tom também . Onde posso assistir?

  • SIMONE ARAUJO

    Tem momentos que penso: Queria ter vivido nessa época.

    • Leila Simone Barbosa

      Elis é, foi e continua sendo a melhor intérprete da música brasileira e eu amo cantar suas músicas e todos que me ouviram eu cantar suas músicas disseram que a nossas vozes tem uns graus de parentesco adoro

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