Saudações, lupulistas!
O padrão médio das cervejas de massa que todos conhecemos são as famosas “Pilsen à brasileira”, aquela cerveja cor de palha, bem clarinha, sem muito aroma, sem muito amargor e facílima de beber, ou seja, com aquela drinkability que facilita beber litros e mais litros sem “empapuçar” ou enjoar. O padrão revelado é algo que serve como média para se saber como estamos em termos de consumo cervejeiro.
Existem dois fatores que servem como filtro para se avançar (ou não) na cultura cervejeira artesanal: o amargor e o teor alcoólico das cervejas. Os dois elementos mencionados servem como termômetro para definir como o “gosto” das cervejas artesanais pode acabar sendo assimilado pelos consumidores, e, certamente, eles acabam definindo se é apenas uma paixão de carnaval ou um amor verdadeiro pelas cervejas artesanais.
Não que todas as cervejas artesanais sejam, necessariamente, amargas ou alcoólicas, ou que tenham pelo menos um desses elementos em destaque. Não, é possível que a cerveja artesanal não seja nem uma coisa nem outra, ou que seja apenas uma delas, amarga ou mais alcoólica.
Todavia, os parâmetros de entrada (ou de barreira, por assim dizer) são o amargor e o teor alcoólico (ou graduação alcoólica), ainda que uma análise sensorial mais completa leve em conta outros elementos, como acidez, corpo (densidade), dulçor, carbonatação e algumas outras nuances, secundárias para a proposição em relevo.
Assim, o texto de hoje terá como enfoque estes dois pontos: como o amargor e o teor alcoólico são elementos circunstanciais para que o consumidor padrão adentre no mercado cervejeiro artesanal.
O amargor como barreira inicial do mundo das cervejas artesanais
Uma das cervejas de massa mais apreciadas pelo consumidor médio é a Heineken. Todavia, se comparada com suas demais congêneres “não-premium”, ou de uma categoria levemente abaixo do seu “padrão de excelência”, um dos principais pontos a serem destacados pelos neófitos é: “a Heineken é amarga”.
Certamente, a assertiva acima destacada não é absolutamente verdadeira, e até em uma análise relativa, sua veracidade é carente (ou passível) de dúvidas.
Uma cerveja de massa, como uma Devassa, uma Skol ou até uma Stella Artois, possui um teor de amargor (IBU, do inglês International Bitterness Unit, ou Unidade Internacional de Amargor) que varia entre 5 e 15, digamos que a média seja 10. Já a Heineken, possui 19 de IBU, quase o dobro de uma cerveja de massa mais usual, no entanto, ainda bem longe de uma Pilsen “de verdade”, alemã ou tcheca, que tem seu IBU acima de 25, chegando até 45 naquelas em que o lúpulo Saaz é colocado de maneira mais acintosa.
Os números trazidos têm o escopo de mostrar que a Heineken não pode ser considerada “amarga”, ainda que possua um teor de amargor superior às demais cervejas do estilo Lager que são mais populares.
Ademais, quando se coloca um espectro de análise mais ampliado, dentro do padrão das cervejas artesanais de mesma fermentação (Lager), aí sim, a Heineken não pode ser considerada, de forma alguma, amarga.
Não que isso seja uma forma de desmerecer a cerveja em apreço, pelo contrário, apenas serve como um indicativo que o consumidor, em geral, não lida com teores de amargor mais elevados e costuma julgar que a Heineken seja amarga (mesmo que ela, de fato, não seja).
O indicativo denota que o amargor é um fator limitante para o ingresso no universo das cervejas artesanais, isso porque quando se debate, em termos mais leigos e amplos, quais as boas cervejas do mercado (de massa), é costume que alguém diga: “a Heineken é boa”, e alguém retruque “mas é muito amarga”.
Assim, avançar para outros estilos que possuem uma dominância do amargor mais proeminente, como, por exemplo, as India Pale Ale’s (IPA’s), demanda-se um costume do paladar (ao amargor) ainda maior. Isso porque não é raro que as IPA’s possuam um IBU acima de 50, e naquelas mais lupuladas, as denominadas de Double IPA ou Imperial IPA, o amargor pode ultrapassar o limite dos 100 IBU (que seria o máximo que o palato humano é capaz de alcançar).
Por mais que haja uma procura crescente por IPA’s, em seus mais variados estilos, seu amargor, que é a sua característica mais elementar, sempre aparece como filtro de barreira para que o estilo possa ser desbravado por aqueles que estão lentamente migrando do mercado de massa para o universo das cervejas artesanais.
Claro que não há nenhuma regra fixa e estatuída como se fosse lei, a qual dispõe que não se pode fazer essa transição diretamente para as cervejas mais amargas e lupuladas, como se não fosse possível sair de uma Skol ou uma Heineken para uma Diabo do Amargor da cervejaria Roleta Russa, que o próprio nome já alude à potência dos seus 120 IBU ou para uma 1000 IBU da cervejaria Invicta, outra que já estampa em sua nomenclatura qual é a sua vertente cervejeira (sim, de fato ela possui 1000 IBU, mas ninguém jamais terá como comprovar isso, humanamente, pelo próprio paladar).
Todavia, uma transição brusca como essa é pouco provável, seria como, musicalmente, fazer a transição do Pagode para o Black Metal, ou regredir do Fusion Jazz para o Funk Carioca.
O amargor acaba sendo um elemento buscado por aqueles que se apaixonam pelas cervejas mais lupuladas (as IPA’s), tanto que acabam recebendo o carinhoso apelido de HopHeads (lupulomaníacos ou lupulistas, em uma tradução mambembe do termo cervejeiro). Assim, pode-se perceber que, à primeira vista, o amargor pode ser um elemento limitante para que se aventure no mundo das cervejas artesanais, no entanto, em um momento posterior, ele pode se converter naquilo que fideliza o apreciador de maneira mais duradoura, levando-o sempre a desbravar novos horizontes da cultura cervejeira.
Cervejas mais alcoólicas e sua maior complexidade
O costume de se beber as “Pilsen à brasileira”, como eu denominei a vasta quantidade de Standard American Lager (SAL) tão comuns no mercado de massa, advém justamente de sua alta drinkability. Isto é, da tremenda facilidade de se beber litros e mais litros de uma cerveja barata, acessível, sem sabor ou aromas marcantes, e que facilmente harmoniza com eventos cotidianos, como churrascos, feijoadas e demais circunstâncias de aglomeração da vida coletiva em comum.
Claro que existem estilos artesanais que possuem uma alta drinkability e também são afeitos a tais eventos corriqueiros, como as cervejas do estilo sour e as do estilo cream ale. Em ambos os casos temos uma alta drinkability, algo bem semelhante as cervejas massificadas do mercado.
Todavia, o que a alta drinkability, que se expressa na cerveja de massa, para além do seu aroma e do seu sabor, principalmente em seu teor alcoólico, denota é que as “Pilsen à brasileira” são afeitas à pouca ou nenhuma complexidade. Claro que é possível encontrar cervejas artesanais que acabam caprichando no teor alcoólico mas, que por desequilíbrio, findam por não entregar um conjunto tão complexo assim. Contudo, é factível se apontar que, normalmente, cervejas com maior teor alcoólico costumam trazer uma maior complexidade inerente, um corpo mais robusto e também um maior dulçor.
As cervejas de massa mais leves e com maior drinkability costumam possuir um teor alcoólico em torno dos 4,2% – 5,3 %, porcentagem essa que também pode ser expressa em GL (ou Grau Lussac), ou ABV (Alcohol By Volume – álcool por volume).
Ou seja, dentro de um panorama mais amplo de bebidas alcoólicas, excetuando-se o mercado das cervejas sem-álcool (ao que o próprio nome já alude), as cervejas de massa são aquilo que há de mais acessível em termos de percepção alcoólica, já que outros fermentados, como o vinho, costumam ter mais de 12% de teor alcoólico, e os destilados possuem níveis de álcool bem superiores, ultrapassando facilmente os 30% de teor alcoólico (algo que algumas poucas cervejas, de estilos bem específicos, conseguem atingir também, mas é algo raríssimo e pouco representativo).
Os teores referidos implicam que as cervejas de massa são um atrativo mais acessível para quem quer ter um maior controle sobre o próprio consumo, para não se embebedar (tão) facilmente, bem como acabam sendo uma alternativa para aqueles que definitivamente não gostam da sensação que o álcool causa no sabor, aquela sensação de queimação. Assim, cervejas artesanais com teores alcoólicos mais elevados acabam sofrendo a mesma interdição que o amargor é capaz de gerar, sendo uma barreira para aqueles que tentam inicialmente adentrar nesse mundo.
Todavia, a percepção alcoólica não é o mesmo que teor alcoólico, tal percepção varia em função de uma miríade de fatores organolépticos e de técnicas de produção da cerveja que está sendo consumida. Assim, é possível que uma cerveja com 10% de teor alcoólico, por causa do seu corpo mais alto, de seu dulçor mais denotado, possua uma percepção alcoólica menor que uma cerveja de 8,5% de teor alcoólico, mas que possua menos corpo e uma lupulagem mais tímida, ou um perfil menos maltado. Outrossim, não se pode confundir a percepção do álcool com a mera aferição técnica de sua presença.
De toda maneira, não há de se furtar ao entendimento que o teor alcoólico acaba sendo um elemento limitador do desbravamento do mundo artesanal, maior até que o amargor, na maioria dos casos, isso porque o amargor por si só tende a indicar menos complexidade do que apenas o teor alcoólico (ainda que ele também não deva ser um critério isolado de análise de complexidade). Assim, quando se combinam os dois elementos, amargor e teor alcoólico, podemos ver que eles podem inibir alguns iniciantes a degustar mais cervejas artesanais.
Saideira
Derradeiramente, o amargor e uma maior graduação alcoólica não são elementos presentes nas cervejas de massa, por isso que acabam sendo barreiras ou filtros para quem se aventura no mundo das cervejas artesanais.
No início, de fato, acaba sendo um pouco difícil se acostumar a degustar cervejas com esses teores mais elevados, em virtude de anos bebendo apenas cervejas mais simples.
Todavia, o recado que fica é que vale a pena se aventurar e desbravar o mundo das artesanais, aprendendo a apreciar cervejas mais amargas e/ou mais alcoólicas.
Música para degustação
Como a maioria dos leitores deve se enquadrar na mesma faixa etária que eu, deixo como recomendação cervejeira uma música ícone de nossa juventude nos anos 90, e que faz breve menção ao caráter “amargo da vida”, a música Bitter Sweet Symphony, da banda de brit-pop/rock britânica The Verve.
A música é icônica pelo seu sample orquestral da música The Last Time, dos Rolling Stones, e também por ter tocado repetidamente na MTV na época do lançamento do seu videoclipe.
Fiquemos com o lema da cervejaria Seasons: “De doce, já basta a vida”!
Saúde!
FOTO: postada em www.ocaneco.com.br