De Hegel a Nietzsche: a ruptura revolucionária no pensamento do século XIX – Marx e Kierkegaard
Autor: Karl Löwith
Editora: UNESP
Ano: 2014
Páginas: 441
Quem se interessa por filosofia alemã precisa realmente passar por esse livro, publicado pela primeira vez em 1939, quando seu autor (Karl Löwith) estava vivendo em Sendai e lecionando na Universidade Imperial do Japão a convite do seu amigo, o professor Kuki Shuzo.
Löwith, um judeu alemão convertido ao protestantismo que foi obrigado a deixar, em 1934, sua terra natal para fugir da perseguição nazista, havia sido, entre 1919 e 1928, aluno de Edmund Husserl e Martin Heidegger. Aliás, Lōwith é um dos três autores a quem Heidegger faz referência em suas preleções sobre Nietzsche (os outros são, seu amigo, Karl Jaspers e seu adversário no campo da política acadêmica, Alfred Baeumler).
Não sei se você sabe, amigo velho, mas nos anos de 1930, quando Heidegger começou a trabalhar em suas preleções sobre Nietzsche, havia uma peleja grande no âmbito da academia alemã em torno da figura do autor do livro Assim Falava Zaratustra. Alfred Baeumler (um dos filósofos que mais se identificava com o ideário nacional socialista), havia publicado um livro em 1931 em que Nietzsche aparecia completamente “nazificado”. O livro de Baeumler gerou reação de muita gente, inclusive do próprio Heidegger (que disputava com o próprio Baeumler o posto de “pensador oficial” do regime de Hitler).
Se pode dizer que naquela época, concomitante à ascensão dos nazistas ao poder, a academia alemã, ao menos nos departamentos de filosofia, estava bem no meio de uma briga de foice pelo espólio nietzscheano. Uma briga que ultrapassou os portões das universidades e ganhou a arena pública, com gente como os irmãos Thomas e Heinrich Mann escrevendo textos sobre Nietzsche para tentar “resgatá-lo” da canalha de extrema direita que o havia sequestrado.
O livro de Löwith aparece também no contexto dessa peleja. Dividido em duas partes, o texto traz, em um primeiro momento, um panorama de como o “espírito” alemão foi construído, a partir da relação pessoal envolvendo Goethe e Hegel até a demolição definitiva desse “espírito” pela obra de Nietzsche nas últimas décadas do século XIX. Num segundo momento, o livro faz uma reconstrução histórica e filosófica da “linha evolutiva”, que leva de Hegel a Nietzsche, passando por Marx e Kierkegaard, mas a partir de elementos específicos.
Dividida em cinco capítulos, essa segunda parte aborda tópicos como: a sociedade burguesa, o trabalho, a cultura, a ideia de humanidade e o conceito de “cristandade”. Nesse passo do texto, Löwith entra no detalhe, abordando como as ideias que configuram a modernidade europeia, ao menos, do ponto de vista do pensamento alemão, se desenvolveram seguindo uma “linhagem” filosófica cuja origem é Hegel e na qual Nietzsche seria o ponto derradeiro.
No jogo que envolve as disputas da época, Löwith faz um movimento de colocar Nietzsche como o pensador que vem fechar a tampa do caixão do “espírito” alemão, que começa regado pela obra de Goethe e Hegel; e não, como queriam os nazis, uma espécie de renovador de um “genuíno” espírito germânico perdido.
Haveria assim uma ponte que une Hegel a Nietzsche e que passa pelos “jovens hegelianos”, por Bruno Bauer, Feuerbach, Stirner, Marx e Kierkegaard (que a despeito de ser dinamarquês foi “germanizado”). Todos os verdadeiros educadores alemães foram, de algum modo, discípulos de Hegel.
Uma leitura desse tipo aparecia como uma porrada na interpretação ortodoxa dos nazis (especialmente na de Baeumler), que buscava colocar Nietzsche fora dessa linhagem do pensamento alemão moderno, que era interpretado como o sintoma de um cristianismo decadente.
É interessante também ver no livro, o modo como Löwith traça a relação entre Goethe e Hegel, lembrando inclusive que, no mesmo ano em que Napoleão avança com suas tropas sobre Jena (1806) foram concluídas tanto a primeira parte do “Fausto” quanto a “Fenomenologia do Espírito”.
No fim das contas Hegel, para o choro e o ranger de dentes dos pensadores vinculados ao nacional socialismo (inclusive Heidegger), seria o centro do cânone filosófico alemão. O sujeito que foi enterrado com o brasão de Lutero (uma cruz negra no meio de um coração rodeado de rosas brancas) seria o mesmo que teria levado à demolição nietzscheana do cristianismo.
Afinal, como pensava Nietzsche, só um autêntico cristão pode ser verdadeiramente um ateu, afinal, apenas os cristãos genuínos conseguiram pensar na escandalosa possibilidade da morte de seu próprio Deus na cruz.
O livro é uma boa dica, não apenas para os estudantes de filosofia, mas também para quem tem a curiosidade de ver como a resistência política se manifesta, também, na labuta acadêmica, como uma resistência hermenêutica.
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Ps .: esse foi mais um ótimo título que adquiri na Cooperativa Cultural da UFRN, hoje, o melhor lugar da cidade pra quem gosta de garimpar bons livros e se interessa por leituras acadêmicas desse tipo.