CLARICE, uma biografia
Autor: Benjamin Moser
Tradução de José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naif (Companhia das Letras)
Ano: 2009
Páginas: 638
A biografia sobre Clarice Lispector, escrita por Benjamin Moser e publicada em uma primeira edição em português pela saudosa editora Cosac Naify (há uma edição atual pela Companhia das Letras) abre com uma longa citação do cabalista espanhol Abraham Abulafia. A escolha dessa epigrafe já dá uma senha sobre o tipo de iluminação que a leitura biográfica de Moser pretende lançar sobre a figura de Clarice Lispector.
Clarice talvez seja uma das autoras mais citadas e menos lidas da literatura brasileira, tal a quantidade de frases (a maioria apócrifa) que circula nas redes sociais em seu nome. Uma ironia da história para uma das escritoras mais orgânicas, intensas e prolíficas que a língua portuguesa nos legou. Pouca gente na literatura brasileira tratou da linguagem com tamanha urgência e entrega. Como ela mesma registrou em um dos seus últimos escritos: “escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida”.
Recentemente a fauna digital nacional, sempre ansiosa pelas migalhas de reconhecimento que caem do banquete cultural da chamada “civilização ocidental”, agitou-se quando a atriz Cate Blanchett chamou Clarice de “gênia absoluta” e se derreteu em elogios ao trabalho da escritora durante a cerimônia de entrega de um prêmio no festival de Cinema em San Sebastian, na Espanha.
Clarice, antes de mais nada, apareceu como uma espécie de esfinge incendiária na cena literária nacional, cercada de mistério e de obscuridades. Moser apresenta, no começo de sua biografia, o desafio de decifrar o enigma dessa esfinge e acaba por se propor a fazer isso patrocinando um movimento de desleitura da obra e da vida dessa mulher genial, a partir de uma redução.
Ao explorar as origens familiares de Clarice, nascida em 1920 em uma aldeia localizada na atual Ucrânia, Moser, ele mesmo um judeu antissionista norte americano, lê Clarice a partir de seu judaísmo. Citando uma conversa com o falecido jornalista Alberto Dines, o biografo reforça a tese de que Clarice seria “como Franz Kafka”, uma escritora profundamente judaica mesmo sem ter tido uma vinculação estreita com o “judaísmo enquanto tal” (entendendo-se aqui talvez o judaísmo rabínico normativo).
Com raízes fincadas na distante Tchechelnik, uma pequena comunidade já bem próximo da Transnístria, na Moldavia, Clarice seria um fenômeno, na leitura de Moser, que emergiu da cultura hassídica do Rabi Baal Shem Tov e do Rabi Nahman de Bratizlav. O caminho para decifrar o “enigma Clarice” seria o de vinculá-la à tradição do misticismo hassídico da Europa do Leste, de modo que sua obra poderia ser lida como uma expressão, em língua portuguesa, de uma experiência profundamente judaica de desenraizamento e de busca de Deus no solo estrangeiro da existência terrena.
Por todo livro esse esforço interpretativo aparece, inclusive na opção de se encontrar em Spinoza e não em Nietzsche, Kierkegaard ou Sartre, a ponte do diálogo de Clarice com a filosofia.
Às vezes, por causa dessa opção exegética, a gente sente que falta, na biografia de Moser, um mergulho mais profundo em outros aspectos que são tão significativos para a obra e a vida de Clarice quanto o seu judaísmo, como, por exemplo a sua condição de nordestina no sul do país (Ela cresceu no Recife e sempre se sentiu muito pernambucana) ou mesmo de mulher em uma sociedade patriarcal e conservadora, que tentou colocá-la em um papel que ela sempre se recusou a interpretar: o de “mulher do embaixador”.
Um aspecto também que me deixou curioso e que poderia ser mais bem explorado em uma biografia é o do quadro psiquiátrico que parece estar presente na família Lispector. A mãe de Clarice faleceu com sintomas de problemas mentais, provavelmente causados pela sífilis que ela teria adquirido ao ser estuprada por uma turba de milicianos, antes do nascimento da escritora, durante a guerra civil na Rússia pós revolucionária. Também o filho mais velho de Clarice tinha um quadro diagnosticado como esquizofrenia, mas bem que poderia ser também associado a algum nível de superdotação e autismo, vinculados à chamada “Síndrome de Asperger”. A relação de Clarice com a linguagem e com a fala também são um indício de que há algo mais do que simplesmente uma ansiedade metafísica transmitida por alguma genética judaica na definição de seu “enigma”.
Aliás é muito sintomático que ela seja apresentada como um “enigma” e que Kafka seja apresentado com um escritor. Uma mulher que escreve como ela, em uma sociedade controlada por homens, só pode realmente soar muito “enigmática”. A violência simbólica que Clarice foi submetida por toda sua vida, inclusive a de ter sua identidade feminina questionada (especulava-se, no início de sua carreira, que ela era o pseudônimo feminino de algum homem escritor); se soma também a casos de violência sexual. Moser retrata pelo menos um desses casos quando Clarice, em 1962, já desquitada, viaja a São Paulo para receber um prêmio pela publicação de “A maçã no escuro”. Na ocasião da cerimônia de premiação o presidente do Brasil à época, Jânio Quadros, expoente máximo do moralismo conservador paulista, após proferir um longo e prolixo discurso; convida Clarice para conversar em um quarto privado e a ataca sexualmente, apalpando-a e pelejando lascivamente para consumar um ato sexual sem consentimento com a escritora. Uma tentativa presidencial de estupro que a fez fugir do local às pressas, com o vestido rasgado.
Ponto curioso do texto de Moser são as descrições sobre a passagem de Clarice por Natal em 1946, quando a escritora se dirigia para a Itália a fim de encontrar-se com o marido, Maury Gurgel, membro do corpo diplomático brasileiro. Clarice passou alguns dias na base aérea de Parnamirim antes de pegar um voo para a ilha de Ascensão, no Atlântico Sul e de lá para uma base aérea norte americana na Libéria, em direção à Casablanca, no Marrocos. Na estadia pela capital potiguar ela fica ainda alguns dias no “horrivelzinho Grande Hotel” (SIC) na Ribeira e descreve Natal como uma “cidadezinha sem caráter, nem mesmo o da velhice”. Um comentário pejorativo, meio enigmático, que talvez tenha a ver com a influência norte americana na cidade durante a guerra.
Um ponto fraco que me deixou incomodado no livro é a visão um pouco superficial da história do Brasil e um certo anticomunismo militante. Moser chega até a desconsiderar coisas importantes para a memória da presença judaica no país como quando, ao analisar o antissemitismo no período do governo Vargas, afirma que não havia “judeus de verdade” (o que isso significa?) nas fileiras comunistas, patrocinando um apagamento da presença do chamado “setor judaico” do PCB.
Também soa forçada a tentativa do autor de “passar pano” para a influência norte americana na implantação das ditaduras militares na américa latina nos anos 60 e 70, ao afirmar que a culpa pelos regimes autoritários nesses países seria de Cuba, que tentou implantar guerrilhas comunistas pelo continente e não da CIA e do Departamento de Defesa Yanque que atuou para desestabilizar a região apoiando regimes militares autoritários de norte a sul.
No mais o texto é muito fluído e traz uma boa pesquisa biográfica com fontes primárias, dessas que existiam antes do surgimento das redes sociais, como cartas e diários, não apenas da autora, mas de amigos e familiares.
Para quem ama a obra de Clarice ou mesmo tem apenas curiosidade para saber mais sobre essa personagem central da literatura brasileira, o livro de Moser é um documento essencial.
Para mim, que sou vidrado no gênero biográfico e que conheci trechos da obra de Clarice na infância, por causa da quantidade de livros dela que minha mãe lia, foi uma das melhores leituras que fiz agora no ano de 2024.
Sem nenhum demérito para o autor, terminei o livro sem estar convencido de que Moser, proporcionando sua redução ao judaísmo, tenha decifrado o “enigma Clarice”. Acho que o mistério da esfinge da biografada, no fim, venceu os esforços exegéticos do biógrafo.
Algo absolutamente normal, diga-se de passagem, posto que, enfrentar os mistérios de Clarice é uma tarefa impossível para apenas um livro. Clarice não é mulher de uma biografia só. É preciso ser muitos para se navegar em seus labirintos.