Uma lagosta gigante violentando um travesti, tendo a cidade de Baltimore como cenário e os assassinatos da Família Mason como referência, dão o tom do que viria a ser a marca registrada do cinema desse pacato cidadão estadunidense: John Waters.
Waters começou a fazer filmes ainda adolescente, com câmeras de 8 e 16MM, influenciado pelos cineastas Gordon Lewis, Fassbinder, Fellini e Bergman. Embora as estéticas kitsch, camp e trash imperassem nesses primeiros curtas-metragens, desde que o ator Harris Glenn Milstead, mais conhecido como o travesti Divine, estrelou suas produções, em 1966, os freaks passaram a ser os personagens centrais de todos os seus filmes; porém, os desajustados de Waters são peculiares. Eles não estão nem aí para a rejeição da sociedade e nem querem ser “readmitidos”, pelo contrário, estão dispostos a mostrar a todo mundo que dentro de nós se esconde algo doentio, bizarro, animalesco.
Em alguns filmes, Waters puniu os freaks de forma severa, como em Multiple Maniacs. Nele, acompanhamos Divine em um ataque de fúria raivosa pela cidade, para em seguida ser cercada por jovens militares que, sadicamente, lhe desferem tiros mortais, salvando a sociedade daquela “aberração”. No entanto, ao final de filmes como Pink Flamingos e Clube dos Pervertidos, os freaks são exaltados como celebridades, pois se comportam de forma livre, sendo sexualmente liberados, fazendo com que a sociedade, que antes os temia, passe a idolatrar o seu jeito espontâneo e debochado de ser.
Da mesma forma, as famílias retratadas pelas lentes de Waters fogem dos estereótipos da “família perfeita”, tão propagada por Hollywood, e se aproximam do modelo satirizado pelo quadrinista Robert Crumb. Waters tanto mostrou pais caretas e reprimidos, cujos filhos “rebeldes” terminam projetando o nome da família (Problemas Femininos, Hairspray, O Preço da Fama, Clube dos Pervertidos), quanto mães solo que criam filhos com algum “desvio” comportamental, vendo-se obrigadas a entrar na vida do crime ou iniciar algum vício ilícito e/ou relacionamento tabu para prover a sua prole (Multiple Maniacs, Pink Flamingos, Problemas Femininos, Polyester). Também focou em casais aparentemente normais, onde a mulher precisava extravasar suas emoções de forma excêntrica (Mamãe é de morte), e ainda em casais sem filhos que se autoidolatram e, geralmente, são os antagonistas das histórias (Pink Flamingos, Problemas Femininos).
Outra característica peculiar dos filmes de Waters fica por conta das trilhas sonoras e do clima retrô. Em meio a comportamentos lunáticos, imorais, cenas trash e absurdas e muito humor ácido, estão lá o rockinho simpático e o doo wop meloso, escolhidos a dedo entre os repertórios de Little Richard, The Centurions, Shirley & Lee, Baldwin & The Whiffles, The Crew Cuts e The Honey Sisters.
É impossível ficar indiferente ao se assistir a qualquer trabalho do John Waters. Alguns os acham toscos demais, já outros curtem a irreverência e as críticas sociais ali presentes.
Poucos sabem que Waters também passou a investir na carreira literária, a partir dos anos 2000. Seus primeiros livros eram autobiográficos, narrando acontecimentos sui generis, como em Carsick: John Waters Hitchhikes Across America, no qual ele aborda sua experiência como caroneiro, indo de Baltimore a São Francisco. Em 2022, ele lançou seu primeiro romance de ficção, Liarmouth, a feel bad romance, que teve ótima aceitação de público e da crítica especializada, tendo sido nomeado a “Melhor Livro do Ano” pela prestigiada revista Esquire.