Saudações, camaradas!
Vamos avisando logo que o texto é polêmico, político e sarcástico. Se você acha que cerveja e cultura é só beber sua cervejinha em um copo Stanley parcelado em 10x nas Casas Bahia (que seja! Eu sei que lá não vende esse copo…) feche a aba do navegador.
O homem é um animal político (ζῷον πολιτικόν – transliterado em zoon politikon), dizia Aristóteles. Ou seja, todas as ações culturais humanas, que se repercutem em fenômenos sociais, também são políticas.
Nada mais natural que, ao se falar em cultura cervejeira, como um ramo próprio da cultura em geral, que se fale de cervejarias que aliam o teor político de suas causas com as cervejas produzidas.
Esse é o significado mais básico de cervejas de luta. São as cervejas que expressam seu teor político de maneira clara e firme. Em tempos sombrios, como os de hoje, de ataques sistemáticos às instituições democráticas, mais do que nunca, a cultura cervejeira precisa ser fortalecida com cervejas de luta. Precisa de cervejarias que se posicionam sem medo.
Não consigo imaginar outro líquido que arregimente as multidões e que possua um alcance social tão amplo quanto a cerveja para robustecer a cultura e falar de temas socialmente relevantes, tais como os propostos. Cerveja não é a pergunta, ela é a resposta e a luta é sua consequência.
O teor do texto de hoje é totalmente livre de qualquer remuneração para fins de publicidade. Não tem “jabá”. Superando essa querela, vou trazer alguns rótulos da cervejaria Soviet, de Minas Gerais, que estampam figuras históricas de lutas sociais, e que pela sua expressão cultural fazem jus à cultura cervejeira em seus mais diversos estilos.
As cervejas abordadas serão: a Lênin (uma ESB, ou English Pale Ale), a Marighella (uma Witbier), a Gandhi (uma Wheat IPA); e, a Rosa Luxemburgo (uma Red Ale). Todas elas são cervejas que combinam a história dos ícones de luta com o estilo cervejeiro proposto, formando uma simbiose cultural de grande relevância.
Então: “bebedores de todo o mundo, uni-vos e brindai-vos”!
Lênin, uma Bitter com: Paz, Terra e Pão!
Lênin é o pseudônimo de Владимир Ильич Ленин (transliterado por: Vladimir Ilyich Ulianov), revolucionário comunista, político e teórico político e primeiro dirigente da URSS após a Revolução de 1917.
Em sua principal obra, “Teses de Abril”, os pilares revolucionários são colocados: Paz, Terra e Pão.
Paz, era a saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial. Terra, a reforma agrária necessária para a igualdade econômica. Pão, era o ideal de comida para todos (não muito distante de nossa realidade, onde ainda se come osso achado no lixo).
A cerveja Lênin é uma ESB (a sigla para English Special Bitter, também conhecida como Pale Ale inglesa). Ela é uma cerveja bem no padrão do estilo inglês.
No aroma, exibe maltado um pouco mais destacado que a lupulagem, com notas carameladas, de toffee, e um pouco de casca de pão. O lúpulo aparece de forma bem suave, com sutis contornos terrosos.
No sabor, o corpo é baixo, o que faz a drinkability ser bem elevada. Mais notas maltadas, com alguns tons de castanha, e levíssimo apimentado. Dulçor presente, mas sem ser enjoativo. Final não muito prologando, e suavemente maltado.
Ela é uma Bitter leve, para conquistar as multidões seguindo os pilares revolucionários! Uma cerveja de muita luta, à altura de uma grande revolução!
Marighella: Uma cerveja para uma Ação Libertadora Nacional
Carlos Marighella foi um poeta, professor, revolucionário, guerrilheiro e político baiano. Apesar do sobrenome italiano (de seu pai), era negro, neto de ex-escravos sudaneses (da tribo huaçá). Foi o inimigo número um da ditadura militar no século XX.
Marighella foi o fundador da Ação Libertadora Nacional, um grupo armado dissidente que lutava contra o terror do regime militar posto de então, tendo sido preso e torturado diversas vezes. Convicto de seus ideais e sempre fiel à luta.
A cerveja Marighella, por seu turno, é leve e refrescante no estilo Witbier. Possui um condimentado muito expressivo no aroma, muito bem temperada, com toda a baianidade necessária para homenagear o combatente revolucionário.
No sabor, tem um perfil cítrico muito bem evidenciado, marcado pela laranja Bahia (em homenagem à terra natal de Marighella) e pelo limão. Tem uma acidez bem suave, apenas marcando seu vigor.
Corpo bem leve e muito fácil de beber. Uma cerveja para sempre lembrar que lutar contra a ditadura militar é um dever cívico de todos nós!
Deixo duas recomendações, uma de filme outra de harmonização. Sugiro a degustação da cerveja pareada com uma sessão de cinema, com o filme homônimo, recém-lançado, com Seu Jorge no papel principal. Uma bela obra de arte para homenagear Marighella e seu ideal que remanesce vivo.
Como recomendação de harmonização indico: qualquer coisa com camarão, de preferência, uma acarajé! Faça um “sudestino” liberalóide passar mal com essa combinação revolucionária.
Uma Wheat IPA Anticolonial, a Gandhi!
Mohandas Karamchand Gandhi, ou Mahātmā Gandhi, foi um advogado, nacionalista, anticolonialista, símbolo da resistência não-violenta. Um homem da paz, mas, firme em seus propósitos e em sua luta anticolonial.
Sua maior arma foi a desobediência civil não-violenta em prol da independência da Índia, em face do domínio britânico, algo que ele alcançou em 1947.
A cerveja Gandhi é uma Wheat India Pale Ale. Certamente, parte da ironia implícita no estilo escolhido para a homenagem tem a ver com o nome do país que nomeia o estilo cervejeiro.
A Gandhi é uma WIPA muito tranquila, com baixo teor alcoólico, muito suave tanto no aroma quanto no paladar. Como toda boa IPA, tem na lupulagem o seu ponto mais forte. Seu perfil cítrico é bem destacado no aroma e no sabor, ainda mais no aroma, eu ouso dizer.
Por ter adição de trigo, mesmo sendo bem leve, a Gandhi tem um corpo bem aveludado e de fácil assimilação. Ademais, se destaca por ter um amargor certeiro no sabor, combinando muito bem com a sua finalização seca, que chama o próximo gole dessa cerveja esplendorosa.
A Gandhi combina a tranquilidade de uma cerveja de trigo com uma perseverança lupulada, sempre tendo erguendo o estandarte da “não-violência” gustativa, sendo apta a agradar todos os paladares, fazendo com que a paz seja a regra.
Uma cerveja revolucionariamente pacífica, apesar da explosão de lúpulos que ela traz!
A esperança de uma Red Ale de valor com a Rosa Luxemburgo
Rosa Luxemburgo (ou Rozalia Luksenburg, seu nome de nascimento) talvez seja a personagem menos conhecida das apresentadas até então. Tal fato, contudo, não lhe diminui de forma alguma, serve até para engrandecer ainda mais nosso conhecimento histórico (materialista e dialético).
Ela foi conhecida por unir os fundamentos teóricos do embasamento científico do método dialético com a ação política em sua militância revolucionária. Superou todas as adversidades e fundou o grupo de tendência marxista que originou o Partido Comunista da Alemanha. Um ícone das bravas mulheres de luta.
A cerveja Rosa Luxemburgo, por seu turno, é vermelha como sua musa inspiradora. Ela pertence ao estilo Red Ale, que seu próprio nome já denota, com uma aparência vermelho acobreada,
Em termos de análise sensorial, ela é levemente herbal no aroma, com um maltado caramelado e exibe uma leve tosta. No sabor, possui notas de toffee e um pouco de cereais. Seu corpo é médio-baixo, e é dotada de um leve amargor, com uma finalização caramelada. Uma cerveja de grande equilíbrio e ótima drinkability.
Unindo sabor e leveza, bem como elementos teóricos da luta com seus pilares de ação política revolucionária.
Saideira
Como diz o ditado: a cadela do fascismo/colonialismo/autoritarismo/necroliberalismo está sempre no cio!
Todo cuidado é pouco com as desventuras totalitárias de ontem, de hoje e de sempre.
A luta é constante, a cultura cervejeira não pode estar desconectada do cenário político e social. Não se pode pensar que cerveja é “apenas cerveja”, quando o contexto mais amplo sempre nos coloca diante de nossa realidade mais próxima.
Assim, rememorar ícones da luta social (de classes) por meio dos mais diversos estilos cervejeiros é sempre uma boa maneira de interligar a cultura cervejeira com tais premissas históricas.
Saliento que existem muitas outras com a mesma consciência e mesmo engajamento, mesmo diante das tentações de Mammon (nosso deus mercado de cada dia). Todavia, o espaço é pouco para tanto assunto, resolvi apenas pinçar esse exemplo da Soviet (até existem outros rótulos dessa cervejaria, no entanto, apenas degustei os que foram abordados), para que ele sirva de modelo para tantas outras cervejas que lutam arduamente.
Fica o lembrete, antes que venham com a falácia do “socialista de Iphone” (aliás, eu uso Xiaomi…), que “Se a classe operária tudo produz a ela tudo pertence”, inclusive as cervejas. A frase não é de Marx, e, sim, de outro teórico socialista, Ferdinand Lassalle, ademais, totalmente aplicável às cervejas e à cultura cervejeira!
Proponho, portanto, um brinde a todas as cervejarias que possuem essa consciência (de classe) e não se apequenam diante das dificuldades culturais de produzir cervejas engajadas, as verdadeiras cervejas de luta!
Brindai-vos!
Recomendação musical para degustação
O tema é tão singular e relevante para a cultura em geral, e, principalmente, para a cultura cervejeira, que eu poderia indicar uma playlist inteira! E ainda seria pouco.
Todavia, para fins didáticos de adequação, escolhi uma canção que aglutina muito de tudo que foi abordado, sobre cultura, questões sociais e ícones da luta.
A canção escolhida se chama La Familia, la Propiedad Privada y el Amor, do ícone da música latina Silvio Rodríguez, expoente da estética musical e cultural surgida com a Revolução Cubana. Silvio é um dos cantores cubanos contemporâneos de maior relevo internacional, sendo um dos criadores do movimento da Nova Trova Cubana.
Saúde! E vamos exorcizar o “fantasma do comunismo” que tanto atormenta o imaginário brasileiro!