“O Apanhador” (no Campo de Centeio): da Rye IPA a John Lennon (com um pouco de literatura)

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Olá culturalistas de plantão, o texto de hoje é para quem gosta de textos interseccionais: cerveja, literatura e música!

Será uma viagem abrangente, que vai misturar uma cerveja, um livro e até mesmo um fato pesaroso sobre um dos maiores músicos de todos os tempos: John Lennon. Sendo beatlemaníaco ou não, se você gosta de cultura, o texto de hoje foi feito para você.

Vamos falar de uma cerveja extremamente complexa, aromática e diferente, pertencente a um estilo não muito explorado no mercado nacional, a Rye IPA, ou uma IPA com centeio. A escolhida é a cerveja O Apanhador, da cervejaria gaúcha 4 Árvores.

O nome da cerveja é uma clara alusão a um dos clássicos da literatura americana nomeado “O Apanhador no Campo de Centeio”, ou, no original The Catcher in the Rye, de J. D. Salinger.

A conexão entre o nome da cerveja e do livro em questão é patente. Ademais, os dois fatos se conectam diretamente com um dos momentos mais tristes da história da música, o assassinato de John Lennon, o líder (fato contestável) dos Beatles, um dos maiores, se não, o maior grupo musical de todos os tempos (fato inconteste).

O livro em apreço se tornou (ainda mais) célebre por ter servido de inspiração para o assassino de John Lennon, o lunático Mark Chapman, que lia compulsivamente a obra de Salinger e dizia ser o anti-herói do livro encarnado.

Em síntese, vamos perscrutar pontes culturais: da Rye IPA até os últimos momentos de John Lennon. Boa leitura!

O Apanhador: Uma Rye IPA maturada em Amburana

Vamos começar nosso percurso cultural do mais particular para o mais geral e abrangente. Ou seja, aplicaremos uma metodologia indutiva ao sair de uma análise cervejeira para terminar com as nuances musicais e jornalísticas do fim da vida de John Lennon.

Para tanto, vamos falar hoje sobre a cerveja O Apanhador, da 4 árvores: uma Rye IPA que foi maturada por 18 meses (chips) de amburana.

Disclaimer: no rótulo, e demais releases de marketing, a cervejaria apenas fala em “maturação em amburana”, sem especificar se a cerveja foi efetivamente envelhecida em barris de amburana. Algo que nos conduz a pensar que ela não foi barricada em amburana, apenas teve adição de chips de amburana durante a sua maturação. Por causa desse detalhe, não se pode dizer que ela é uma Barrel Aged Rye IPA, apenas que é uma IPA de centeio maturada em chips de amburana.

Ainda que não seja exatamente uma Barrel Aged Rye IPA, a cerveja O Apanhador é extremamente complexa e aromática. Cabe a ressalva que o estilo Rye IPA (classificado na seção 21B. do guia do BJCP), por si só, já é um tanto quanto “raro”, não sendo tão conhecido do grande público, e, portanto, não há muitos exemplares nacionais disponíveis.

cerveja-o-apanhadorO estilo possui como grande diferencial para as demais IPA’s o uso de centeio (ou centeio maltado), costuma-se utilizar algo entre 15 a 20% de malte de centeio na composição das Rye IPA’s.

O uso do centeio confere algumas características únicas às IPA’s, em especial um leve caráter picante, ainda que não adstringente, ao conjunto. Ademais, elas costumam ser mais secas que os exemplares de IPA’s similares que não utilizam o centeio. O centeio também potencializa o amargor e confere um leve condimentado, sem contudo, ter um caráter proeminentemente intenso do centeio, dando um gosto de “grão” à cerveja, como seria comum noutro estilo, denominado de Roggenbier, ainda mais raro que as Rye IPA’s.

Só por ser uma Rye IPA, O Apanhador é uma cerveja diferenciada no mercado, e combinando seu nome com o estilo ao qual ela pertence, e, a partir daí, muitas conexões históricas e culturais podem ser traçadas. Não obstante, o fato já mencionado de ela ser maturada em amburana lhe confere uma camada extra de complexidade e de apelo cervejeiro.

A amburana é uma madeira nacional já bastante utilizada no envelhecimento do destilado tupiniquim mais conhecido: a cachaça (ou aguardente). Nas cervejas, a amburana começa a ganhar espaço para ser utilizada no envelhecimento e na maturação, como é o caso da cerveja O Apanhador.

A maturação em amburana confere muitas nuances diferenciais ao resultado final da cerveja, ressalta ainda mais alguns elementos do estilo, como o condimentado, dando um leve toque fenólico ao conjunto exibido pela O Apanhador.

Outrossim, a maturação em amburana dá notas de anis-estrelado, canela, cravo, cumaru, baunilha e um sutil toque de coco, fazendo com que a cerveja lembre um dos destilados americanos mais icônicos: o Bourbon.

Dessa forma, O Apanhador é uma cerveja deveras complexa, que agrega elementos do malte de centeio em grande harmonia com a maturação em Amburana, com toques condimentados, leve dulçor residual e muita personalidade. Essa é uma cerveja digna da carga cultural que carrega em si.

O Apanhador no Campo de Centeio: O Grito de Rebeldia da Juventude Americana

Claro que a tentativa por ora engendrada não é apenas fazer um “resumo” de um dos clássicos da literatura americana, O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, e sim, fazer uma intersecção entre o nome e o estilo da cerveja em apreço com a carga cultural que ela carrega, prioritariamente em referência à obra literária.

o apanhador no campo de centeioDe toda maneira, é importante contextualizar que O Apanhador no Campo de Centeio (no original, The Catcher in The Rye) é uma obra sobre a juventude norte-americana, publicada originalmente como um romance em forma de série entre 1945-46, e, posteriormente, compilada e publicada como livro em 1951.

A história do romance narra a vida e as desventuras de Holden Caulfield, o anti-herói adolescente que tem sua lida cotidiana referendada por J. D. Salinger.

O grande sucesso do livro se deu, na época, porque, apesar de ser direcionado ao público adulto, fez muito sucesso entre os adolescentes, que se viam inspirados e refletidos na narrativa da vida do personagem principal. E isso era algo que inexistia até então: uma literatura voltada e dedicada exclusivamente ao público juvenil.

Apesar de não ser uma narrativa épica, com muitas reviravoltas ou com trama intrincada e complexa, essa obra literária fez sucesso justamente por contar o cotidiano da juventude americana em meados do século passado. Tratando de temas triviais da vida dos jovens, como angústia, alienação, paixões corriqueiras, fracassos estudantis, identidade, perda e com uma crítica sutil à superficialidade da sociedade americana (mais abastada), o livro foi um sucesso desde o lançamento (e até a atualidade).

O enredo se inicia com a reprovação acadêmica de Holden, que acaba sendo expulso da instituição educacional por causa disso. A partir de então ele retorna para a casa dos pais, em um bairro de classe alta de Nova Iorque (ao menos esse era seu plano original). Todavia, ele muda de ideia e decide “aproveitar a vida”, gastando o dinheiro que lhe resta, revendo um antiga namorada, conhecendo novas pessoas, tendo bebedeiras homéricas e fazendo algumas reflexões existenciais (ainda que deveras genéricas).

O título do livro (“O Apanhador no Campo de Centeio”) deriva justamente de conceito fulcral da obra, exposto em uma das divagações imaginativas e fantasiosas do personagem central. Holden se imagina como um guardião que deve proteger crianças em um campo de centeio que fica à beira de um precipício. Ele é “o apanhador” das crianças! Cabe a ele protegê-las para que não se percam e acabem por cair da borda do penhasco onde o campo de centeio se localiza.

As crianças ficam vagando perigosamente perto da beira do precipício e o único capaz de impedir essa tragédia é o anti-herói da narrativa. Metaforicamente, Holden é o protetor de vossas inocências: cair no precipício além do campo de centeio é perder o que há de mais puro da candura da infância. O trabalho do personagem é justamente tolher a ocorrência desse sinistro. Ele se imagina como uma figura heroica, que de maneira simbólica, salva crianças de uma queda abrupta do penhasco, ou seja, salva-lhes de conhecer os males e as agruras da vida adulta (algo que, curiosa e contraditoriamente, ele está apenas começando a desvendar por si mesmo).

Dados os devaneios e propensões megalomaníacas, no final do livro, presume-se que Holden “ficou doente” e terminou seus dias em uma instituição psiquiátrica. Ainda que o final do livro não seja claro, percebe-se que, apesar de o anti-herói ter entendido que não poderia ser “o apanhador”, ele acabou consumido por essa ideia pouco ortodoxa de ser o salvador da inocência das crianças e sucumbiu à loucura.

O retrato final de Holden ilustra um pouco a figura insana da próxima seção: alguém que sucumbiu à loucura.

O Assassino de Lennon: O Devaneio do Autointitulado “Apanhador”

O assassinato de John Lennon, em 1980, foi um dos momentos mais tristes da indústria cultural e musical. Foi algo chocante, abjeto e insano. Apesar de Lennon não ter mais o sucesso da época em que ele era o líder dos Beatles, ele estava começando a ter algum destaque novamente em sua carreira solo e na sua parceria musical com Yoko Ono, sua esposa.

O assassino de John Lennon se chama Mark Chapman, e a conexão com o tema dado é que ele era desmesuradamente fissurado pelo romance O Apanhador no Campo de Centeio. Ele se denominava a encarnação de Holden Caulfield, em síntese, ele se achava o próprio “apanhador”, tal como descrito na obra de J. D. Salinger.

Em seu devaneio maníaco, Chapman justificou seu ato homicida justamente na “proteção da infância das crianças”, como se Lennon (ou sua influência sobre os mais jovens) fosse o abismo, e o campo de centeio fosse a indústria musical americana (a qual tinha o ex-Beatle como beira de penhasco).

O assassino era tão detidamente obcecado pela obra de Salinger que, no momento da sua prisão, foi encontrado com um exemplar do romance em sua posse, e lendo algumas de suas passagens preferidas (justamente as que ratificavam o seu protetorado de “apanhador”).

Por mais que seja uma recordação triste, a da morte de um dos maiores músicos de todos os tempos, ela ilustra bem o poder dessa obra literária, que mesmo depois de 30 anos de publicada inspirou as sandices de Chapman.

No entanto, por outro lado, há de se enaltecer que essa mesma obra também foi capaz de inspirar a cultura cervejeira mais de 70 anos depois com a criação da belíssima cerveja O Apanhador.

Saideira

O impacto cultural do simbolismo de salvação da inocência das crianças trazido pela obra “O Apanhador no Campo de Centeio” é marcante, assim como também é marcante o perfil complexo e os sabores marcantes e levemente picantes do centeio na receita da cerveja O Apanhador.

Mais interessante ainda é observar como a cultura cervejeira é capaz de fazer muitas interconexões com seus estilos, com seus rótulos e com os nomes das cervejas. Beber cerveja artesanal é algo engrandecedor culturalmente.

Leiam mais, bebam melhor!

Música para degustação

A recomendação musical de hoje não poderia ser outra que não uma música de John Lennon. Dado que o evento em questão já se deu quando ele já não estava mais nos Beatles, a música escolhida, uma das mais emblemáticas de sua carreira solo, foi lançada dez anos antes de sua morte, em 1970: Working Class Hero.

Uma música simples, apenas voz e violão, que exalta o caráter heroico e de rebelião da classe trabalhadora (ainda que alienado pela superestrutura social), algo similar ao que Holden Caulfield propalava ao se auto exaltar como “O Apanhador” (embora, igualmente, Chapman tenha distorcido totalmente tal conceito em seu ato extremista ao matar Lennon).

Saúde, e boas leituras e boas músicas a todos os heróis do cotidiano cervejeiro!

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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2 Comments

  • Chrystina Ferreira

    Fazendo uma pequena pesquisa sobre uma curiosidade sobre O Apanhador e o Campo de Centeio, cheguei, sem nem lembrar que era seu, nesse blog, mas sua forma de escrever é as palavras que usa, já tem identidade, antes da metade já lembrei que era você Lauro.
    Parabéns pelas reflexões!
    Bjão
    Ass. Chrys Clenched (Elvira rs)
    (E sim, o seu texto meu ajudou com a pesquisa).

    • Lauro Ericksen

      Que coisa maravilhosa, Chrys!!
      Fico muito feliz que você tenha gostado do texto, e agradeço demais as palavras gentis!
      Fico mais feliz ainda em saber que ajudei a minha musa (Elvira!!) Na pesquisa!
      Bom demais que contribui de alguma forma com a dispersão do conhecimento.
      Um super beijo!!!
      😘😘

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