BIBLIOBUNKER: Fílon de Alexandria

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FÍLON DE ALEXANDRIA

Autora: Francesca Calabi

Tradução: José Bortolini

Editora: Paulus

Ano: 2013

223 páginas

 

Se você foi meu aluno de Hermenêutica Jurídica na antiga FARN (hoje UNI-RN), entre 2005 e 2009, certamente ouviu falar, ao menos se não tiver faltado a minha segunda aula do semestre, em Fílon de Alexandria.

Aliás, vamos combinar, a cidade de Alexandria no Egito foi muito mais importante para a cultura mediterrânea e para os destinos da tal “civilização ocidental”, do que Atenas.  A pólis de Péricles e Platão só ganhou mesmo essa centralidade toda que se atribui a ela quando os europeus modernos (especialmente os alemães) começaram a criar o mito do tal “milagre grego” para justificar uma suposta prevalência civilizacional do continente europeu sobre a África e a Ásia.

No fim das contas foi mesmo na Alexandria helenística que as bases do milênio que se iniciava se configuraram. Bem no meio de uma encruzilhada de povos e culturas que envolvia fenícios, árabes, persas, sudaneses, gregos e latinos, os fundamentos das grandes religiões monoteísticas que marcaram o período medieval, foram lançados.

Esse ensaio sobre a obra de Fílon (também chamado de Fílon, o judeu), publicado pela Paulus (uma das melhores editoras brasileiras para quem se interessa pelo pensamento antigo e medieval), escrito pela professora de Filosofia Antiga Tardia na Universidade de Pavia (Itália), Francesca Calabi; deixa bem clara a centralidade do pensamento desse autor muito pouco conhecido por esses litorais (até por aqueles que terminam uma graduação em filosofia, diga-se de passagem).

Fílon, que nasceu no século I da era comum, talvez tenha sido o primeiro pensador a produzir uma leitura das escrituras hebraicas, provavelmente a Senpuaginta  (a tradução da “Bíblia hebraica” para o grego coiné), em uma chave francamente analógica, usando uma exegese marcada pela influência da filosofia de Platão, Aristóteles e dos pensadores estoicos.

Essa ideia de que é necessário o uso de uma chave alegórica para se ler textos religiosos, que foi fundamental na definição das teorias hermenêuticas de pensadores cristãos posteriores como Orígenes, nos dá a noção de que, muito antes de ser uma peça sagrada de adoração litúrgica, a Bíblia é uma coletânea de obras literárias que exige um esforço interpretativo que vá muito além da literalidade do texto.

Foi essa pegada hermenêutica que fez com que Fílon se tornasse central, influenciando, não apenas toda a patrística católica (de Clemente a Agostinho), mas também a teologia negativa de Pseudo-Dionísio e mesmo no neo platonismo de Plotino.

Aliás a influência da obra desse pensador judeu foi tão grande na cristandade medieval que Eusébio de Cesareia, na sua História Eclesiástica, lá por volta do século IV da era comum, andou citando um suposto encontro entre Fílon e São Pedro em Roma, ajudando a consolidar a tradição de que o autor de A migração de Abraão e A vida de Moisés, seria, na verdade, um cristão enrustido, tendo até, supostamente, sido batizado.

Talvez por causa dessa cristianização forçada, a presença de Fílon não tenha sido sentida nos textos de autores judeus até o fim da idade média, quando as tradições da Kabbalah luriânica começaram a jogar Platão pra dentro da Torah, como já havia feito antes o próprio Fílon.

A própria leitura analógica que Fílon faz de Moisés, interpretado a partir da figura do “Rei filósofo” presente na República de Platão, mostra essa influência cruzada, que era a tônica do ambiente cultural da Alexandria helenística. Abraão também é lido por Fílon como uma metáfora platônica do intelecto que ascende do mundo sensível (da escuta de Deus) até o fundamento invisível da realidade (até a unidade criadora presente na intuição de Deus).

No fim das contas a dica é essa.

Se você se interessa por filosofia antiga e medieval esse livro de Calabi oferece um painel muito instigante da obra de Fílon e ainda nos traz uma discussão bem atualizada sobre a recepção do seu pensamento, tanto por cristãos quanto por judeus, além de, no fim do texto, apresentar uma lista comentada de todas as suas obras.

Pois é, amigo velho… é sempre bom lembrar que, nessa época em que o Brasil parece cair num fundamentalismo distópico e numa bibliolatria escatológica, típica dos muitos “fim de mundo” que povoam a historia da cristandade, as lições hermenêuticas de Fílon Judeu podem ser uma excelente terapia de descontaminação intelectual.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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