BIBLIOBUNKER: A Revolução Transumanista

A REVOLUÇÃO TRANSUMANISTA

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A Revolução Transumanista

Autor: Luc Ferry

Tradução: Éric R.R. Heneault

Editora: Manole

Ano: 2018

181 páginas

 

Tem livros que são literalmente uma cilada.

Não porque sejam mal escritos, mal editados ou sem fundamentação, mas porque não oferecem aquilo que prometem no título, na orelha ou na quarta página e acabam meio que camuflando seu objetivo principal.

O livro de Luc Ferry (ex ministro da educação nacional do governo Jean-Pierre Raffarin e expoente da nova geração de pensadores franceses vinculados à direita liberal) é um desses.

Por dever de ofício (já que leciono disciplinas ligadas a filosofia da técnica e a epistemologia da ciência em cursos superiores de engenharia e de tecnologia da administração de sistemas) comprei esse título acreditando que iria encontrar uma boa introdução para o tema do transumanismo.

Na verdade acabei encontrando um panfleto liberal, com pouca substância filosófica, que busca defender a ideia de que o avanço da NBIC (Nanotecnologia, Biotecnologia, Informática e Cognitivismo) não vai comprometer a permanência e a expansão da economia capitalista e dos valores liberais como pensam alguns “bioconservadores”.

Ferry oferece apenas um curtíssimo capítulo sobre o sentido e o conceito do chamado “transumanismo”, uma perspectiva filosófica que remonta ao iluminismo de Diderot e Condorcet, mas que ganha certidão de nascimento, com nome e sobrenome, a partir da obra do biólogo evolucionista Julian Huxley na década de 1920.

A noção básica de que a espécie humana possa transcender seu próprio “ser” e evoluir a ponto de ultrapassar a si mesma e se transformar em outra espécie; junto à ideia de que o desenvolvimento tecnológico seria a “expressão da evolução biológica de Darwin com outros meios” é tocada, no texto, de modo muito superficial.

Ferry se dedica mais a tentar polemizar com pensadores como Habermas, Michael Sanders e Francis Fukuyama (classificados por ele como “bioconservadores”) a fim de defender a influência positiva da articulação entre nanotecnologia e biotecnologia, incluindo ai a possibilidade de uma “edição de DNA” humano. A noção tradicional de que a tecnologia médica teria apenas uma função “terapêutica” (curar e prevenir doenças) seria, desse modo, trocada pela ideia de que a biotecnologia deveria “melhorar o humano” de maneira a produzir indivíduos que vivessem mais e tivessem capacidades físicas e mentais “turbinadas” tecnologicamente.

O negócio fica embaraçoso mesmo quando, em sua tentativa de responder às críticas de Habermas, Ferry propõe uma distinção entre eugenia liberal e eugenia nazista, tendo em vista que, no primeiro caso, a biotecnologia serviria positivamente aos interesses dos indivíduos e suas famílias em uma lógica de mercado e no segundo caso serviria negativamente a “comunidade racial do povo” através de uma lógica estatal.

O pensador francês também se esforça para demonstrar que a “uberização” da economia e a digitalização da vida, articulada com os usos dos Big data e inteligência artificial, apesar de possibilitar o fim do trabalho como nós o conhecemos, iria potencializar ao “infinito” a lucratividade das empresas e em função disso não colocaria sob risco os fundamentos do capitalismo (mesmo esquecendo propositalmente os efeitos sociais catastróficos de um processo desse tipo).

Minha impressão pessoal é que Ferry, com esse livro, acaba dando mais uma mão de tinta na pintura que faz de si mesmo como de uma espécie de “Dr. Pangloss hipster”, que acredita, a partir de uma teodiceia liberal, que esse admirável mundo novo em que vivemos é o melhor dos mundos possíveis.

No fim das contas o apurado é uma certa sensação de platitude teórica e de uma miopia histórica bem evidente, sintoma de um distúrbio filosófico típico daqueles que não conseguem enxergar o tempo e o espaço para muito além do seu estreito e ocidental jardim europeu.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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