Heidelberg – Alemanha, 25 de Janeiro de 2017.
Uma vez expliquei a Daniel Rüdiger, um rapaz alemão de Hamburgo que fez intercâmbio na casa de meu pai, em Natal, entre 2002 e 2003, que nós, brasileiros, temos uma noção muito peculiar de tempo e uma certa incapacidade de compreender a natureza dos relógios. Um fato, diga-se de passagem, que faz com que a maioria de meus conterrâneos chegue sempre com “quinze minutos de atraso” para qualquer encontro marcado.
“Eu não sei se vou conseguir viver assim”, me disse Daniel, com uma cara aflita, imaginando se iria suportar passar um ano em um território tão cheio de incertezas e subliminaridades.
Acho que só ontem eu realmente compreendi o que o afligia, quinze anos atrás, quando aportou no Brasil para fazer seu intercâmbio.
Aproveitando a melhora no clima (a temperatura subiu de menos quinze para menos onze) fomos até Triberg, com o objetivo de ver uma cachoeira congelada. A cidade fica a 900 metros acima do nível no mar, já no pé da cordilheira alpina, bem no meio da Floresta Negra. O passeio foi particularmente agradável apesar da cidade estar com uma cobertura de neve que em alguns lugares, como próximo a um pequeno lago de montanha congelado, chega a quase um metro.
O frio não parece assim tão ameaçador quando se está vestido com as roupas certas ou quando se calcula, com exatidão, o tempo que permanecemos ao ar livre. O maior problema é que a permanência fora de um lugar aquecido ou um erro na composição do que se veste pode ser fatal em uma temperatura inóspita como esta. Esses dois detalhes são cruciais pra sobreviver em uma terra que passa uma parte do ano congelada. Por isso, talvez, a fixação dos alemães com o tempo.
Digo… não apenas com o tempo no sentido de “clima”, mas com o tempo no sentido da temporalidade e da permanência. Há algo de filosófico nisso, não é?
Percebi claramente essa dinâmica com a medição do tempo quando fomos a uma loja de relógios cucos na rua principal de Triberg. O lugar se vende para turistas como “a terra dos relógios” e um dos esportes prediletos da população parece ser o de construir magníficos relógios cucos que são verdadeiras obras de arte. Uma mistura de escultura, marcenaria e engenharia cenográfica, em tamanhos e formas variadas. Tudo feito à mão, de modo artesanal, com um cuidado e uma milimétrica geometrização dos detalhes que deixou a todos nós, potiguares que temos essas outras formas de lidar com o tempo, bastante impressionados.
Ao visitar a tal loja, que também é uma espécie de museu dos relógios, entendi melhor tanto o velho Martin Heidegger quanto o jovem Daniel Rüdiger: há uma atávica dimensão técnica no modo de ser alemão que se mistura com a ideia de ordem e proporção. Por algum motivo que não sei bem explicar, a razão, a sobriedade das formas, a geometrização do espaço e os detalhes técnicos de funcionamento de certas geringonças parece ter casado de papel passado com a alma dos alemães. Diante da cara de deleite e orgulho do vendedor da loja-museu, ao contemplar nosso encantamento com o movimento surpreendente e intrincado dos relógios cucos, postos em funcionamento, com suas figuras delicadamente esculpidas em madeira, saindo e entrando por janelas minúsculas, deslizando através de trilhos enquanto os ponteiros marcavam as horas, minutos e segundos, em um balé circular que picotava o fluxo contínuo do tempo num ritmo maquínico, pude perceber um detalhe bem curioso na psique daquela gente: o deleite estético diante da máquina é tão forte quanto o deleite estético diante da natureza.
O pragmatismo do relógio, o “pôr-se a uso” da mecânica de se medir o tempo, parece ser apenas uma desculpa para um prazer oculto. Não basta apenas fluir o gozo diante da arte, é preciso encaixa-lo em um sentido prático para que o esplendor do ornamento se justifique. Era como se a função técnica do relógio escondesse a intenção mais fundamental do ornamento.
Quando o vendedor nos explicava como seus magníficos relógios, de todas as formas e tamanhos, funcionavam, não escondia um deleite orgulhoso. Ao elucidar o mistério mecânico por trás da beleza sincronizada do movimento, sentia como se estivesse nos dando uma justificativa moral para o gozo que sentia diante da obra. Algo que deveria ir muito além da simples contemplação desinteressada da ordem.
Confesso que não conseguia parar de pensar em Kant e nos álbuns do Kraftwerk quando ouvi aquele vendedor, no pé daqueles Alpes, me explicar algo sobre a arte de acertar um relógio.
Essa impressão não me saiu da cabeça hoje, quando acordamos cedo para pegar um trem de Villigen-Schwenningen até Karlsruhe e para de lá seguir em outro comboio (como dizem os portugueses) até Heidelberg.
Já faz um mês que não dirijo um carro e confesso que me sinto muito bem sem esse ônus. Não precisar de carro a toda hora e poder se locomover no transporte público de modo confortável é um dos grandes luxos que a vida nessas frias terras do norte pode oferecer a um potiguar que vive em Natal. A nossa amiga Helena queria muito que a gente conhecesse Heidelberg; e não apenas porque Hölderlin (poeta que estudei no doutorado) escreveu uma ode à cidade, mas sim porque foi lá que ela fez sua graduação em Letras.
Pra mim foi um visita muito significativa, isso porque fizemos o chamado “caminho do filósofo”, que se estende por mais ou menos uns três ou quatro quilômetros, do Instituto de Física Teórica até o Instituto de Teologia. No trajeto, que percorremos a pé pela encosta, pensei comigo mesmo que bem que essa rota (da física à teologia) pode ter inspirado Hegel na divisão dos capítulos de sua Fenomenologia do Espírito, inclusive pelo fato de, tal qual o texto do filósofo, termos sido surpreendidos em nosso percurso por muitas curvas íngremes, bruscas e escorregadias, que dão vertigens mas proporcionam vistas magníficas.
Esse vagar filosófico pelas encostas arriscadas de Deus e pelo o pavimento matemático da estrada que os homens constroem para medir, controlar e prever os fenômenos da natureza, me pareceu realmente um troço bem alemão.
Foi justamente por esse percurso íngreme, seguindo o curso do rio Neckar, que margeia a cidade sombreada por pequenos montes e pelas ruínas de um castelo do século XIII, que o romantismo alemão encontrou sua “cena”. Hegel, Schelling, Hölderlin, Eichendoorf certamente percorreram esse caminho mais de uma vez. Por aqui o romantismo alemão pôde se configurar como uma força cultural dominante e abriu espaço para o domínio sobre o pensamento no continente europeu nos séculos XIX e XX.
Hölderlin mesmo, o grande personagem trágico daquela geração, poeta louco que antecipou o mesmo colapso do pensamento que vitimaria Nietzsche no final do século XIX; nasceu às margens desse rio, que se abria pra nós em sua curvatura, na trilha do caminho que percorríamos.
Nessas minhas viagens, talvez só mesmo uma Cuzco encravada entre as montanhas do Peru tenha produzido uma imagem tão bela quanto as que a gente conseguia visualizar no percurso entre o prédio da Física Teórica e o da Teologia, enquanto Heidelberg se exibia em uma ou outra curva do Neckar.
Heidegger, que estudou por aqui, achava que os alemães do tempo de Hölderlin haviam captado uma mensagem enviada pelos gregos antigos em direção ao futuro, ao contemplar o fluxo dos seus rios. Dizem inclusive, os que vivem nessa terra há mais tempo, que os alemães são um povo fluvial, com uma conexão atávica com esses rios cantados por Hölderlin em seus poemas.
Curioso é que o rio é sempre lido pela filosofia ocidental, desde o tempo de Heráclito, como uma metáfora para o tempo. O mesmo tempo que parece ser capturado pelos relógios e submetido à ordem mecânica da razão humana e da contagem dos segundos, minutos e horas.
Certo… é verdade… o tempo é mesmo fluxo, como nós, potiguares, sabemos bem. Apesar disso, o tempo também pode ser uma contagem matemática, decupada por um mecanismo que reduz o seu movimento caótico à uma ordem e a um ritmo que apaziguam os corações humanos diante do assombro de sua própria existência.
Se esses poetas e filósofos alemães que se encantaram com a visão de Heidelberg nos revolucionários tempos de furor romântico, enviaram alguma mensagem ao futuro (como pensou Heidegger) eu sinceramente não sei. O que eu sei é que entre rios e relógios a fascinação alemã pela ordem talvez persista, por mais alguns séculos, como motor do pensamento. Isto é… se é que haverão séculos tão ocidentais quanto esses últimos trezentos ou quatrocentos anos. Séculos tão paradoxais, cheios de assombro, encanto, morte e opressão.