E é tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense estar.
Gonzaguinha
Impossível mensurar a dor de perder um ente querido. Ainda mais difícil é imaginar a dor da mãe que perde um filho. Foi pensando nessa dor para a qual não existe remédio que resolvi escrever esta crônica, talvez como forma de homenagear as mães que já perderam um ou mais filhos. Algumas eu conheço, outras não. Mas todas elas estão irmanadas em sua dor. O texto é, também, uma forma de abraçá-las e tentar confortá-las em sua inconsolável dor, em sua tristeza profunda, em sua incompreensão, em seu vazio…
São mães que perderam filhos que ainda estavam em seu ventre ou mães que perderam filhos recém-nascidos. Mães que perderam filhos ainda crianças. Mães que perderam filhos adolescentes ou jovens. Mães que perderam filhos adultos. Filhos com suas vidas já estabelecidas, filhos que orgulharam os pais porque eram pessoas de bem, honestas, éticas, trabalhadoras, amigos queridos, bons companheiros; filhos que haviam se formado e/ou conseguiram um bom emprego. Filhos que, além disso, haviam construído uma família, alguns até deram netos aos pais, que agora são avós corujas e vivem a paparicar as crianças e a dividir com amigos e familiares as peripécias/descobertas dos pequenos.
Confesso que a ideia inicial era escrever uma crônica em homenagem a uma amiga que perdeu um filho de cinco anos de forma trágica, mas ao iniciar o texto fui tomada pela lembrança de outras mães que também vivenciaram a dor de perder um filho e por isso também lhes dedico a crônica de hoje. A crônica seria também um preito de saudade ao menino que conheci e com quem estabeleci um laço de afeto logo no primeiro encontro. Ele partiu há três anos. A notícia de sua morte dilacerou meu coração e naquele dia não pude abraçar sua mãe, que estava morando em outra cidade. Chorei sozinha ao desligar o telefone. Tive de enxugar as lágrimas e seguir em frente. Aquele era mais um dia de trabalho, estudo. Nosso encontro aconteceria três anos depois em minha casa, onde a recebi com seu filho algumas vezes. Foi tão difícil olhar para aquela moça de olhar tristonho e buscar alguma palavra que pudesse amenizar sua dor. Ao menos dessa vez pude abraçá-la e dizer que estava ali para ajudá-la de alguma maneira. Procurei falar o mínimo possível sobre a partida do menino porque sei o quanto ainda dói lembrar aquele dia trágico.
Impossível esquecer aquele dia fatídico. Estava me arrumando para ir trabalhar quando recebi o telefonema de Cláudia. Com a voz embargada, ela me disse que havia perdido seu filho. Aquela notícia me fez pensar na efemeridade da vida, nas promessas não cumpridas… Em nosso último encontro, eu havia prometido levá-lo ao shopping antes do Natal para que ele brincasse um pouco no parquinho, fizesse um lanche. Ele ficou radiante com a notícia. Depois, o levaria para escolher um brinquedo. Esse encontro jamais acontecerá e isso ainda machuca meu coração.
Depois de três anos vivendo na Paraíba, ela está de volta a Natal e ainda tenta reconstruir sua vida. Ela saiu de minha casa há pouco tempo e não paro de pensar em nosso reencontro, no meu desejo de poder ajudá-la de alguma forma, de poder amenizar sua dor. Ela vive um momento difícil porque está desempregada e cuidando sozinha de uma filha de três anos. Conta apenas com um benefício do governo e com a solidariedade dos vizinhos e conhecidos. Vítima de violência doméstica, deixou o marido por causa das agressões frequentes e não recebe dele nenhuma ajuda material para as despesas da filha. Vive de bicos e, de porta em porta, vendendo panos de prato e alguns quitutes que ela mesma prepara, vai tentando conseguir o sustento diário.
Ainda abalada com a perda do filho, ela me diz que não consegue visitar o túmulo do menino e tem a sensação de que está fazendo algo errado, como se tivesse abandonando o filho outra vez (quando tudo aconteceu, ela estava lutando na justiça pela guarda do menino). Expliquei, de uma maneira simples, que ali é apenas um lugar simbólico, que ela carrega seu filho no coração e dele guarda as melhores lembranças e todo o amor que dedicou ao pequeno em seus cinco anos de vida. Tentei convencê-la de que não deve carregar consigo nenhum sentimento de culpa. Ela perdeu o filho de forma trágica quando o menino passava um tempo na casa de familiares. Um descuido, para não dizer irresponsabilidade, ceifou a vida do garoto.
Sei que meu encontro com o pequeno Davi jamais acontecerá. Guardarei na lembrança os momentos em que estivemos juntos em minha casa. Seu sorriso. Seu abraço. Seu afeto. Sua alegria. Sua inocência. Apesar de ter revisitado uma dor que estava meio adormecida, vivenciei uma experiência bonita hoje, com a visita de Cláudia. Ela não veio sozinha. Estava acompanhada da filha caçula, Alice, que era recém-nascida quando o menino partiu e agora está com três anos. Aquela visita me ensinou algo importante. Uma lição da qual não quero esquecer. Apesar de tudo, é preciso seguir em frente. É como se o sorriso daquela menina estivesse me dizendo, de alguma maneira, que a vida continua. Afinal, como nos ensina Clarice Lispector: “A tragédia de viver existe sim e nós a sentimos. Mas isso não impede que tenhamos uma profunda aproximação da alegria com essa mesma vida”.
E mesmo não sendo fácil, uma mãe que perde seu filho, precisa seguir em frente, seja porque precisa cuidar da própria vida, seja porque precisa cuidar de outros filhos e/ou netos, do companheiro/companheira… Por isso, dedico esta crônica a todas as mães que perderam um ou mais filhos, especialmente: Ana Carolina Ribeiro; Ana Paula Motta; Geruza Câmara, Islane Oliveira; Joselita Silva; Mirtes Renata (mãe do menino Miguel Otávio, cinco anos, morto em junho de 2020, ao cair de um prédio no Recife, onde estava aos cuidados da patroa da mãe, empregada doméstica, que passeava com os cachorros da família); Renata Ribeiro; Rosângela Bergantim; Salizete Freire (in memoriam); Sheyla Cristiane (mãe de Anna Lívia Sales, que foi vítima de feminicídio aos 19 anos e deixou órfão um bebê) e Telma Araújo.
Quem sabe esses versos do mestre Gonzaguinha consigam expressar um recado que vocês poderiam deixar aos seus filhos que já partiram: “Eu apenas queria que você soubesse / Que aquela alegria ainda está comigo / E que a minha ternura não ficou na estrada / Não ficou no tempo presa na poeira”.
2 Comments
Querida Andréa! É verdade! Impossível mensurar a dor que eu sinto em minha alma pela partida da minha tão amada filha Lúcia, sua amiga que tanto te admirava e a sua irmã Cristina. Há um grande vazio em minha vida. Vivo com a esperança de reencontra-la outra vez, em outra vida, como ela havia me prometido uma semana antes de partir. Não consigo conter as lágrimas. Obrigada pelo seu carinho e pela amizade com minha princesa Lúcia. Que Deus possa confortar o coração de cada mãe, pai, irmãos e demais familiares, assim como conforte o coração dos amigos.
Belíssima crônica