A morte das estantes

estante de livros

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A discussão é velha, mas sempre válida. Todas as vezes em que uma tecnologia que se popularizou muito entra em crise, passamos a pregar o fim de alguma coisa. Tem sido assim com o Facebook e o Instagram e o futuro das redes sociais. Foi assim com os primeiros discos no começo do século XX e o fim da música ao vivo, já que nenhuma canção poderia – por limitações tecnológicas – ultrapassar a casa de três minutos. Depois com o CD e o fim da música como um todo, diziam alguns fatalistas. As fitas de filmes que rebobinávamos antes de devolver às locadoras também deram lugar aos dvds e depois Blu-rays…

Com o livro,, que tem durado muito mais tempo, a discussão não é diferente. Há gerações inteiras lendo em pdf, ebooks, wattpads e o diabo virtual a quatro, com bibliotecas inteiras que só não cabem em um pendrive porque estes também já são dinossauros nesta pangeia instantânea da vida virtual.

Isso nos leva às nuvens e streamings de tudo o que há no mundo. Há streamings de música, de filmes e livros, por exemplo. E há em grandes quantidades. É possível ter um mundo inteiro de conhecimento e cultura alocado em prateleiras virtuais, em estantes feitas de bites e poeira dos astros.

Deste ponto para o que considero e trago agora é um pulo. Um pulo de ponte, talvez.

Com tanta tralha virtual que não ocupa mais lugares físicos em prateleiras, paredes, escrivaninhas, bibliotecas, caixas e tantos outros materiais continentes, o que será do futuro das estantes?

Estarão todas elas condenadas ao vazio dos vasos com plantas artificiais (aprendi que agora se chamam “plantas permanentes”, em mais uma tentativa de “agregar valor” e “rebranding”), ou aos penduricalhos de viagens, às inutilidades vendidas nas lojas da TokStok ou da Camicado?

Como garantir uma vida digna a uma pobre estante, fruto do trabalho laborioso de marceneiro exigente ou uma tábua sobre tijolos na casa do menino pouco abastado de dinheiro, mas não de cultura?

Como é possível imaginar a vida de uma estante que não venha a conhecer um livro de Valter Hugo Mãe ou um filme de Ingmar Bergman? Uma estante que nunca venha a pendurar um disco do Miles Davis terá vivido em vão?

Ser a casa de um porta-retratos é um destino suficientemente digno a uma estante?

É com isso que me preocupo agora.

Ter espaço, mas não ter livros, discos, dvds e outros tantos para dispor sobre ele… tudo guardado dentro de armários virtuais cujo portal se abre a partir do meu celular, que sabe mais da minha vida do que eu, que retém minha memória, meus interesses e segredos.

Imagino agora os ossos de tantas estantes mundo a fora, envergadas não pelo peso irracional dos livros, mas pelo vazio triste de seus silêncios.

Imagino o funeral do marceneiro que desenha cada vez menos estantes, obrigado a debruçar-se sobre os intermináveis desenhos de cozinhas projetadas.

Quem entre nós ainda guardará por essas estantes em seus últimos suspiros?

Theo Alves

Theo Alves

Theo G. Alves nasceu em dezembro de 1980, em Natal, mas cresceu em Currais Novos e é radicado em Santa Cruz, cidades do interior potiguar. Escritor e fotógrafo, publicou os livros artesanais Loa de Pedra (poesia) e A Casa Miúda (contos), além de ter participado das coletâneas Tamborete (poesia) e Triacanto: Trilogia da Dor e Outras Mazelas. Em 2009 lançou seu Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis (poesia e contos); em 2015, A Máquina de Avessar os Dias (poesia), ambos pela Editora Flor do Sal. Em 2018, através da Editora Moinhos, publicou Doce Azedo Amaro (poesia).

Como fotógrafo, dedica-se em especial à fotografia documental e de rua, tendo participado de exposições que discutiam relações de trabalho e a vida em comunidades das regiões Trairi e Seridó. Também ministra aulas de fotografia digital com aparelhos celulares em projetos de extensão do IFRN, onde é servidor.

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