O conto “Vezes e Vozes”, de Bartolomeu Correia de Melo, incluído no livro Rosa Verde Amarelou, é uma deliciosa página de memórias da infância do autor em Ceará-Mirim.
Lá pras tantas, falando sobre as matinês do cineminha da cidade, descreve um episódio, que não resisto à tentação de transcrever:
“Aquele alvoroço na calçada do cinema. Troca de revistas e figurinhas, pregões e baganas, brigas por lugar na fila. Naquilo tudo, tinha um confeiteiro chamado Inácio. Menino velho de calças pega-bode e gaiatices de Cantinflas. Fingindo atraso, tabuleiro no pescoço, chegava correndo desengonçado. Aos berros, arremedava a fala do mascate turco, o gringo daquela freguesia.
– Esbera, esbera Salim, zinhora Derezinha!
Vivia assim, entre risos e confeitos, sempre achado feliz pela meninada. Decerto que todos invejavam a alegria que lhe abrandava a pobreza franciscana. Havia naquilo algum lirismo pressentido; doçura-maior que, sem saber, dava de graça.”
Esse Inácio, hoje, é o funcionário aposentado e escritor Inácio Magalhães de Sena.
Extraordinária figura humana, Inácio. Conheço-o desde o tempo das “Cocadas”, lá se vão cinco décadas. Apesar da idade avançada, é um enfant terrible. Irreverente e piadista, às vezes excede-se. Embora seja intelectualmente muito bem dotado, comporta-se, não raro, de modo surpreendente.
É um bom caráter, seja dito desde logo. Não teve, porém, formação convencional, burguesa. O pai dele morreu ainda moço, deixando a viúva e dois filhos na pobreza. Gente de boa família, mas em situação extremamente difícil. Inácio, menino de calças curtas, tornou-se vendedor ambulante, contribuindo para a subsistência dos familiares. Vendia cavaco chinês, confeitos e outras baganas, na estação do trem e na calçada do cinema, em Ceará-Mirim. A bem dizer, criou-se nas ruas. Já adolescente, ou quase, ganhou proteção do vigário, Padre Rui Miranda, que tentou fazê-lo seminarista, mas em vão. Inácio não se sujeitou à disciplina do Seminário, logo voltou a Ceará-Mirim e ficou sendo sacristão da igreja matriz. Sempre fiel à Igreja, tornou-se com o tempo, profundo conhecedor da doutrina católica.
Muito do menino sem amarras sobrevive no adulto. E, às vezes, nos desconcerta. Devemos, no entanto, compreender e aceitar as suas peculiaridades de comportamento, não só porque sabemos que ele é incapaz de fazer o mal, mas também porque admiramos o cabedal de conhecimentos de que é possuidor, e até mesmo porque, em sendo muito espirituoso, humorista nato, as próprias excentricidades o tornam engraçado, divertido.
Os dois pequenos livros de sua autoria, sucessos de público e de crítica, apenas deixam entrever o seu grande potencial como escritor.
Cinéfilo inveterado, sua paixão pela sétima arte motivou o documentário biográfico “Sêo Inácio ou o Cinema Imaginário”, do diretor Hélio Ronyvon, filme apresentado no Festival de Gramado/2015, bem como em outros eventos culturais do país.
A importância de Inácio na cena cultural está sendo, enfim, reconhecida. Ele é, na verdade, como se costuma dizer – “uma enciclopédia ambulante” (e muito mais).
Certa vez, na roda de conversa da antiga livraria Potylivros, ouvi o embaixador Fernando Abbot Galvão, homem lido e corrido, dizer:
– Inácio é o mais culto dos meus amigos.
Dom Inácio, Bispo de Taipu – ele próprio assim se intitula, com muita gaiatice e ironia. Dom Nivaldo Monte, arcebispo de Natal, chamava-o “colega”.
Explicando o cognome, Inácio disse, em entrevista concedida ao escritor Thiago Gonzaga, constante do livro Impressões digitais (2015):
– Um deboche de mim mesmo e de grande número de pessoas ocas e de títulos, como uma que conheci, que era burro em três línguas.
Viva “Sêo” Inácio!
Agora, lábios meus, dizei e anunciai
Agora, lábios meus, dizei e anunciai – é como se denomina o primeiro livro de Inácio (Natal: Nossa Editora, 1985). Trata-se de uma novela (ou conto extenso?), em que se narra a viagem maravilhosa – de Ceará-Mirim a Juazeiro, onde ele é sagrado Bispo de Taipu.
Na própria escolha da sede da imaginária diocese já se vislumbra o tom hilário que perpassa toda a obra. Taipu, na realidade, é uma pequena cidade do interior, paróquia modesta.
Pleno de humor e lirismo, o autor faz uso de técnicas do Romance Picaresco, enveredada pelo Realismo Mágico e, com esta mistura, cria uma ficção muito sua, em que a linguagem regional também entra como componente importante. Embora estreante, surge no pleno domínio da palavra escrita.
Li o seu livro ainda nos originais e, encantado com a beleza de imagens, fui grifando alguns trechos, que me tocaram, de modo especial. Como este, por exemplo:
“Veredas corriam na caatingaria deserta. Trinados. Calangos disputavam nas folhas secas, em homéricas correrias. O monte Cabugi, cônico e misterioso, me olhava arrogante, me tentando à escalada.”
Melhor ainda o seguinte:
“A manhã ficou uma liturgia de beleza. O sol tirava seus paramentos multicoloridos e vestia a casula de ouro”.
Note-se que esta frase ganha realce quando situada no contexto da narrativa que é de religiosidade católica.
Mais adiante:
“A noite tinha sido de iniciação e mistério. Ainda doíam os gemidos das mulas-sem-cabeça, ainda se podia ver na vereda as pegadas de Seres de Assombração. Passei pelos mistérios da madrugada velha e ouvi gnomos e duendes, quando era confeccionada a aurora.”
Vejam que a preocupação “literária”, aí bem evidente, não prejudica a simplicidade de estilo, característica do autor.
Não resisto à tentação de transcrever mais um trecho do livro, já agora como exemplo de humor e graça:
“Nuvens de papagaios cobriam o sol e se aproximavam de mim, quando o mais belo deles, depois de graciosas evoluções no ar, me olhou e disse:
– Para onde vais, peregrino?
– Ao Santo Juazeiro – falei. – E vocês, aladas criaturas, que fazem por estes ermos? – perguntei ao Papagaio Superior.
– Estamos de férias – respondeu ele.
– São daqui mesmo do Ceará? – indaguei.
– Não! Somos do Pará e estamos conhecendo o Nordeste.
Dito isto, partiram, cantando um martelo agalopado.
– Que beleza! – exclamei. – Até gente do Pará sabe que o Nordeste é o coração real do Brasil. Louvado seja meu Padrinho Cícero!
– Para sempre seja louvado – respondeu uma vaca que tocava o ângelus com seu chocalho.”
Sem dúvidas, um momento antológico.
Comprovando o alto valor da obra de Inácio Magalhães, Thiago Gonzaga a inclui entre as dez novelas essenciais da literatura potiguar no século XX (ver Os grãos – ensaio sobre literatura potiguar contemporânea, 2016, pág. 144).
Além de Agora lábios meus, dizei e anunciai, vale a pena ler, também, do mesmo autor, Memórias quase líricas de um ex-vendedor de cavaco chinês (Natal: Sebo Vermelho Edições, 2000).
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