A beat-mania Kerouac

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Croniketa da Burakera #25, por Ruben G Nunes

Vivemos um tempo kafkaniano. Há uma doidura estranha no ar global. Desde os bagos, xanas, passando pelo pão-nosso de cada dia, até os voos d’alma de cada um, há uma desembestada emergência-da-violência. Tá tudo baratinado.

Zumbís bandalhos, politiqueiros fanatiqueiros, black-bocs anarq-drogados, traficantes bem armados, terroristas e horroristas, passeiam pelo nosso cotidiano e imaginário. E vão quebrando nossos copos e sonhos.

zumbisParece que o horror da barragem de Brumadinho rompeu dentro de cada um de nós. Avalanches de detritos e lamas sociais, criados por nós mesmos, invadem ruas, imprensa, Câmara, Senado, Tribunais, shopis, bares, cafofos, motéis. E corações. Almas poluídas.

Mundo, mundos…

Vários mundos nos atravessam. E nos atravancam. De cabo a rabo. Do mundo real ao mundo virtual ao mundo das politicalhas ao mundo da bandidagem. E trollam com a gente. Desgraceiras desgranidas. Um quase estupro social coletivo. Tudo digital e de alta tecnologia é verdade. Mas também de alta periculosidade pra cada um. É bronca todo dia, mané!

Por onde ir? Em que mundo estar ou não estar? Bombordo ou Boreste?… Estados Unidos ou China? Direita ou Esquerda?… Real ou digital?…

Na boca do forno? Fooorno!!! Farão tudo que seu Mestre mandar? Faremos tooodos!… Estamos aos poucos virando robôs-humanóides? Fechados em si mesmos.

Que nem Gregor Samsa, personagem de Kafka no romance A Metamorse, de 1915. Que não virou robô. Mas baratinou e virou um insetão com deprê e tudo.

Vocês sabem a história. Se não sabem, dou um flash-zap.

Seguinte, chaparia: de tanto ser acuado e triturado pelos monstros do sistema social, Gregor Samsa, caixeiro-viajante, caba do bem, destrambelhou de vez. E também virou um monstrengo.

Virou um baratão. Um baratão mesmo, chefia. Das solas dos sapatos à cabeçorra triangular. Com barbatanas e tudo. O baratão de Kafka.

Corpo, aparência, maneiras de um baratão nojento, areado. Com todos os traços e toques, do genial imaginário literário do velho Kafka. Que capta com maestria o tragirônicofantástico da VidaViva, no suor nosso de cada dia.

E nós, velha-guarda, nesse nosso tempo também tragirônicofantástico, estamos nos fubecando nesse cotidiano de mil barragens rebentando  bagaços e rejeitos sociais pra cima de nós. Ou pelo poder oficial dos governos. Ou pelo poder do dinheiro. Ou pelo poder das belas mentiras ideológicas. Ou pelo poder da bandidagem. Ou por todos eles. Ou por culpa de nossas próprias fuleragens.

Isso sem contar com as tramoias do poder global do G-7, o grupo das nações mais ricas do planeta, segundo o FMI (Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão, Reino Unido, USA). Que possui 64% da riqueza do mundo. E que governa o planeta como um verdadeiro Império globalizado, segundo Antonio Negri e Michel Hardt, filósofos contemporâneos, em sua obra “Império”, de 2000.

Mas tem também a China e a Rússia que não estão nesse grupo. Mas que são também todas poderosas, muito ricas e bem armadas. A China já está do outro lado da lua. E a Rússia tá chegando de novo. Sabia que o Putin foi da KGB, na antiga Rússia comunista?

Daí que de um modo ou de outro é muito poder pra cima da gente, manusho. E mexe com nossas vidas todo tempo.

As imagens diárias que saltam das esquinas do mundo para as mídias são contundentes: corrupção, bala perdida, droga, sequestros, assaltos, desemprego, carestia, fome, guerras, homicídios, feminicídios, racismo, terror-horror,  conflitos, armas nucleares, violência, violências… por aí.

Ainda agora ví na TV uma cena barbaresca. No metrô de Estocolmo, lá na Suécia, dois gigantescos guardas suecos arrastando com violência uma mulher grávida pra fora do vagão porque não tinha o ticket da passagem.

Um horrorismo, chefia!

Mas logo na Suécia? Éééé, mané, na Suécia mesmo! Uma barbárie daporra num dos países mais avançados e civilizados do mundo.

Há funda sensação, mano-velho, de que não só o mundo material e social desmoronam.

Mas que também, no trambolhão dos piripaques d’amassos e d’amizades, o mundo d’amores e d’afetos se encana, ferra e lasca a gente.

Ôi?… Cumassim?… Isso mesmo, mano. Tá tudo embaçado. Tá tudo desamorando mesmo… e fora da faixa.  

Estaremos todos nós doentes? Há uma crise de afetos? Por que o vertiginoso avanço tecnológico também nos degrada e esvazia?

Neurose da civilização, solidão urbana, consumismo, tecnicite, angústia da morte, carência afetiva, jogos-de-interessesfalta de peia… sei lá…

Quasinada-se-güenta nessa porralhada, bixo!

Mas seja lá o que for a tramoia, um belo dia a coisa acontece. E te agarra e te sacode pelo cangote. Repressão e depressão. Reprê-e-deprê.

Dá um puta de um vazio, véi. Vazio do mundo real e do mundo virtual. Tanto faz. Vazio do vazio. Sabe como são essas coisas de crise existencial, de sentido da vida. Coisa de saco sem fundo. Preencher o vazio com mais vazios.

Que vazios, mano? Sei lá, chefia… essas coisas… vazio d’afeto, d’amizade, vazio da mansidão, da emoção, da paixão, da fé, das crenças, do desemprego, da grana, das ideologias, vazio dum papo amigo…. vazio dos buracos-vivos… vazio do infinitaço dentrofora de nós… esse nunca terminar de espaços, estrelas, escuridão – quié-quiéisso, mano?… cadê a gente?… cadê as gentes?… cadê a paz-e-amor-bixo?…cadê a deusalhada?… o silêncio nos olha… o silêncio nos olha… te segura, bixogrilo!…

Vazio-de-vida. A gente acaba amalucando por aí, m’ermão. É preciso, então, um sentido, uma essência, uma busca. Uma música talvez. Digaí!

A música da Vida? Toque logo essa música, dotô. Uma sinfonia. Um sambalêlê. Um bundabalanço. Violino e atabaque. Faz barulho nesse silêncio infinito, negão! Cadê os deuses? Cadê, porra?

Cadê a alegria de viver, cumpadi?     

É como se a vida fosse pouco a pouco se esvaziando dentro de nós e, de repente, a gente se olha no espelho-espelho-meu e vê ali um grande buraco vazio. Um olho te olha, lá dentro. Será? Onde? Abismos.

E a gente emburaca, de boa. Preencher as buraqueras vazias. Né-fácil-não, cara! Daí a gente ou vira Gregor Samsa, o baratão de Kafka. Ou um midiático robô-bobão. Ou então a gente dá um tranco nos carunchos e encanações, e vira gente pra valer. Será? Ondequando? Sei lá, malandro…

Gregor Samsa baratão baratinado baratilouco barateando baratices pelas esquinas cá dentro de cada um… kafkaneando a gente… sacana de Kafka…

Kerouac, autor maldito da geração beatnik dos anos 50, disse que em dado momento alguns homens saem por aí, ensandecidos, em busca da essência da vida e de si mesmo.

A maioria busca, porém, uma essência além das coisas, das pessoas, das relações. Além do aqui-agora.

Daí procura um deus, uma força, uma ideia, uma energia, um algo mais. Que, mesmo lá desse além, dê sentido a essas mesmas coisas, pessoas e relações, do nosso aqui-agora.

Essa busca por um sentido essencial da vida se dá de várias maneiras. Mas tem uns prolegômenos. O distinto – ou distinta – buscador tem sempre umas bronqueiras d’amolesta. Ou tem conta do banco no vermelho. Ou  digníssimas chifrâncias dos trelelês amorosos. Ou dor de cotovelo crônica. Ou é malucão mesmo.

A busca da tal da essência da vida pode ser via acadêmica como aquele filósofo pesquisador mergulhado nas suas reflexões clássicas, sonhos metafísicos-mofados, fora da vida.

Pode ser via marginal como daquele beatnik dos anos 50, ou o hyppie dos anos 60, saindo por aí, on the road, uiscando, puxando uns barrufos, em busca de si mesmo, montado na liberdade veloz de sua harley-davidson.

Catrevagem daporra!

Época de sonzão, m’érmão! Em algum bar de New Orleans, Ella Fitzgerald&Louis Armstrong, curruchiavam o suave “Dream A Little Dream of me”. Enquanto noutro cabaré Little Richard incendiava a galera como seus dirty-blues ferozes, Tutty-Frutti e Long Tall Saly. E a turma rockrolando, fumaçando e s’engatando. Doideira geral. Sai debaixo, maluco!

A essência pode ser também buscada através da arte, da literatura, da música, da filosofia, da religião, da poesia, da mística, da ciência, da procriação, da atitude de vida…

Contudo, essa busca da essência ou só nas lonjuras de um além-além, ou só no tranco veloz dos aqui-agoras, é quase sempre inócua. São só cacos do real.

Negó-seguin, boy: o agora é um zap do antes-e-depois e do depois-e-antes. Tudo num repente ou maciota, num vai-e-vem ou vem-e-vai, num vuco-vuco esbarrando-se-triscando c’a gente.

A essência está em cada parte em eterno movimento. Nem só um aquém. Nem só um além. Nem só um agora. Tá sabendo?

Tudo flui se plasmando, tudo se plasma fluindo. Como o mar.

Daí, como viver só o agora? Se não viver as rolagens do antes-e-depois? Lembranças e sonhos fazem parte do aqui-agora. Nenão? De que são feitos teus agoras? Digaí, mano?  Mas cada um tem seus jeitos…

Cada um tem seus jeitos… que interagem, se reproduzem, se recriam, nos tempos e momentos. Como ondas do mar, encapeladas ou remansas, recolhendo-se-esparramando em espumas, intensas, no vai-e-vem do agora.

Após uma dessas transas que marcam a vida, Kerouac narra em “Os Subterrâneos”, 1953, o papo-cabeça que teve com Mardou Fox, sua grande e inteligente amante negra. Disse Mardou, já meio chapada: “Os homens são tão malucos, querem a essência, a mulher é a essência, lá está ela bem na mão deles mas eles saem correndo construindo grandes estruturas abstratas… e ficam achando que a mulher é um prêmio e não um ser humano… posso estar nessa merda também mas não tenho nada a ver com isso… ”.  Kerouac responde com espanto: “… Mardou isso é uma velha idéia minha, uma idéia linda, eu nunca ouvi ninguém exprimir isso melhor e nem sonhei”.

E continua Kerouac, também chapado: “Mas não posso nessa confissão trair o mais íntimo, as coxas, o que as coxas contêm…  as coxas contêm a essência – e no entanto eu sei que devo ficar lá e de lá eu vim e para lá  um dia hei de voltar, mas assim mesmo tenho que sair correndo por aí e construir construir – para nada – poemas de Baudelaire …”.

Daí que, a essência, pra Kerouac, não é algo que está lá num longe, além vida, numa transcendência idealizada interna ou externa – porra nenhuma!

A essência, pra tio-Kerouac, está aqui mesmo, na carne e no espírito, individual-social, de cada um, de todos, e da vida.

Quer dizer: a essência está na mulher e entrecoxas.

Não só no vuco-vuco carnal. Mas também – e sobretudo – no sentimento espiritual da coisa.  Carne e Espírito. A essência está no modo carnespiritual dos enganchos.

Claro que desse modo de pensar e sonhar “livre”, fizeram muitas distorções, reduções e interditos, no tempo dos hippies.

Em “Aftermath: The Philosophy of the Beat Generation”, 1957-8, Kerouac faz uma critica aos modos xavecados de interpretar suas ideias.

Seja como for, homem, mulher, ou trans, todos nós, somos projetados no mundo por essa sensual via entrecoxas, como diz Kerouac.

Ali, entrecoxas, está a essência carniespiritual-afetiva.

Dali viemos. Dali, daquele misterioso abismo de carnes chanfradas. Buracovivo. Dali saímos, no fluxo dos tempos, desejos, amores e espermas.

Interfaces de mundos paralelos que nos liga ao outro de nós mesmos. Ancas, coxas, nádegas, seus entornos e contornos, seus versos e anversos, suas carnicurvas e carnitensas, tudo isso converge amorosamente e gloriosamente para os abismos femininos.

Há uma sedução inconfessável nos abismos entrecoxas da mulher. Há também, ali, o mistério de encarnações e avatares. Portal do infinitaço, mano.

 Quem já não se espantou? Quem já não desejou? Quem já não tremeu nas bases, diante dessa essência entrecoxas? Te segura, doido!

Essência que nos olha. Entre saias e pernas, nas esquinas e shoppings das cidades, a essência nos olha, vigia, espera. E sorri.

Partida, chegada, início e fim, acalanto e fantasia, sublimação e carnação, por ali – entrecoxas – passam todos os afetos e desafetos, sexos e trans-sexos.

Ali, todos os grandes amores. Ali, todas as grandes guerras. Ali, ao vivo, o infinito de nós todos, em cor, odor e mucosas esponjadas.

Em meio a tensão urbanóide da cidade veloz, a essência entre-coxas de Kerouac nos olha e chama para a dança do infinito. A paz carnal do aqui e agora. Terapia do amor e do desejo.

Não penso que Kerouac esteja longe d’alguma verdade. Nem acho tampouco que seja isso uma marca machista.

Talvez tenha, sim, uma marca da inquieta libido dos beatniks. Um certo rastro freudiano, deslumbrado e chapado.

Mas de algum modo, e através da música e batida do rock da época, Kerouac busca reencontrar a essência do amor, no abraço humano intimista.

Na verdade, quem sabe da vida de Jacques Kerouac, esse maldito rei dos beatniks, sabe bem o que ele quis dizer.

Ele realmente viveu seu submundo: poetasescritores marginais da San Francisco de 1953, onde liberdade de pensar e sonhar era, no mesmo passo, liberdade de viver intensamente.

Desde aquela vida subterrânea de vôos, drogas, vícios, jazz, bares, motos e estradas, Kerouac pregava que viver era uma mística de bondade universal. Era a aventura do amor de todas as cores e credos, sem condicionamentos.

 Amizade colorida, mago-véio! Amizade colorida!

Contra o vazio da vida, o afeto forte do amor e da amizade, transgredindo a moral repressora. O que importava era a “batida do coração”beat – marcando a vida, como as batidas fortes do bop marcando o jazz e o rock, daquela época.

Enfim, a obra de Kerouac é uma descrição real das contradições e diferenças humanas tentando se resolver na ordem do afetivo.

Ele fala de perda e solidão em meio à sociedade convencional que deixou de escutar as “batidas do coração”.

Havia nele, pode-se dizer, uma espécie de ética da pureza marginal. Uma ética das transgressões naturais, contra os regramentos impostos pela sociedade, que cerceavam a liberdade e levavam ao vazio.

Vazio que levou Gregor Samsa a ser esmagado e se auto-esmagar pela deprê desse vazio, e se transformar no baratão de Kafka.

Contra a síndrome do baratão de Kafka sendo esmagado pelo vazio da Vida, é preciso “dar uns amassos” na Vida.

Amassos carnespirituais. Preenchendo com beat afetivo – a “batida do coração”balançando-se-remexendo nos buracosvivos entrecoxas.  Eis a beat-mania de Kerouac.

Contra o horror do vazio, contra o terror da violência, a única esperança é ir em frente e emburacar. Tentar sempre a vida. Tentações de vida.

A cada bala perdida do stress contemporâneo, haverá sempre um sonho achado entrecochas urbanoides: a beat-mania de Kerouac.

E no final de toda zoeira, mano, quem sabe se a essência da VidaViva seja mesmo essa beat-mania de Kerouac?…

… a carnespiritualidade do tamujunto entrecoxas… que bordeja pelo infinitaço do xibíu como num voo de gaivotas no azul…. afinal, viver é tentar con-viver na “batida do coração” – ou não é?

Ruben G Nunes

Ruben G Nunes

Desfilósofo-romancista & croniKero

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1 Comment

  • Carmen miranda

    Forte e carneapiritual. Uma porrada na batida do coração. A leitura nos coloca diante do sentido/não sentido da vida diante da barbarie que se tornou nosso mundo.
    Tem saída? É preciso tentar. Sempre escutando as batidas do coração.

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