Da minha vida qual o fato mais remoto que me ficou na memória?…
Uma imagem esgarçada surge lá nos confins do tempo: vejo-me, menino novo, deitado em uma rede quase morrendo de chorar. Foi quando me separei dos meus pais pela primeira vez.
Morávamos em Martins, e meu pai, certo dia, levou-me em seu cavalo para a fazenda do pai dele, nas imediações da vila de Gavião (atual cidade de Umarizal). Eu era muito novo, tanto que, ao invés de viajar na grupa do animal, como todo menino taludo, fui na lua da sela amparado por papai.
Hoje, suponho que os meus pais iriam ausentar-se de Martins por algum tempo, e eu, filho único até então, fui deixado na fazenda nos cuidados de madrinha Tilosa, segunda esposa do meu avô Cícero.
Quando o meu pai despediu-se de mim e foi embora, montado no cavalo, eu tive a impressão de que nunca mais iria vê-lo, e caí no choro. Desesperado, fiquei desfeito em lágrimas no fundo de uma rede. Foi o primeiro grande impacto que sofri na vida.
Outro episódio dramático também marcou minha infância em Martins. Residíamos, então, na velha casa que pertencera ao meu bisavô materno, situada na esquina da rua Coronel Demétrio Lemos com a atual rua Emídio Fernandes.
Noite alta, acordo com um barulho vindo da frente da casa. Aturdido, corro para o quarto dos meus pais e, ao transpor a porta do quarto, vejo minha mãe com um enorme facão na mão, em atitude desafiadora. Meu Deus! Que seria aquilo? Eu sabia que ela era incapaz de ferir alguém com aquela arma. Por que, então, a empunhava, decidida ao que desse e viesse? De súbito, ouço tiros, palavras em tom ameaçador, insultos, o mundo vinha abaixo. Corro, na maior aflição à procura do meu pai e o encontro na sala da frente, ao lado do meu tio Neto, então hospedado em nossa casa, ambos com revólver na mão. Do lado de fora, na rua, umas pessoas gritavam palavrões e atiravam contra a porta e as janelas da sala. Meu pai e tio Neto reagiam, fazendo disparos pelas frinchas da porta. Não me lembro de como e quando o tiroteio acabou. Felizmente, ninguém morreu nem se feriu.
No dia seguinte soube que um arruaceiro, cujo nome prefiro não dizer, queria matar meu tio Neto, por haver este, supostamente, dirigido galanteios à sua noiva. Esse mesmo desordeiro, anos depois, assassinou um pacato cidadão, em Martins, por motivo de ciúme.
Mais um acontecimento desses “meus tempos heroicos” surge-me na memória sentimental, nitidamente, fazendo-me reviver outros fatos e tipos, que me deixaram marcas. Era o ano de 1950. Eu tinha, então, sete anos de idade. Na frente da nossa nova morada, na rua Coronel Demétrio Lemos, meu pai chega a cavalo e apeia-se, transtornado, sem conseguir reter as lágrimas. Vinha do enterro do pai. Meu avô Cícero era um homem simples, pequeno agricultor criador, ele mesmo cuidava dos roçados e do gado. Simples e bom. Conheci-o já velho, os cabelos brancos que nem capuchos de algodão, as mãos rudes, por vezes cheirando a leite cru, os pés sofridos nas alpercatas de couro curtido que ele mesmo fazia. No semblante calmo, um ar de eterna bonomia. Às vezes fazia graça, contava anedotas.
Papai, que era filho único e perdera a mãe em tenra idade, tinha-lhe grande afeição, a bem dizer, venerava-o.