Um rei cumpre seu reinado, e depois morre. É inevitável.
Os mitos de criação de diversos povos narram as muitas experiências que os deuses fizeram até chegar à forma humana, tida como perfeita, pois lhes prestavam total devoção, fazendo oferendas e sacrifícios em seus nomes, garantindo que eles, os deuses, jamais fossem esquecidos.
Na verdade, os humanos concretizam (e legitimam) a imortalidade dos deuses ao divulgar seus feitos num ciclo ad infinitum de geração a geração.
Quando o homem passa a querer obter a imortalidade dos deuses para si (vide a Epopeia de Gilgamesh), então os deuses revidam através de castigos, que também podem ser vistos como um ultimato a um dogma que não deve ser jamais contestado.
Porém, a busca pela imortalidade continua viva dentro do ser humano. O ápice dessa busca é a noção de que ele pode, assim como os deuses, criar vida a sua imagem e semelhança, com o mesmo objetivo de subordinação e adoração: primeiro veio o golem, depois os robôs e seus derivados: autômatos, androides, replicantes, cylons… E, como precaução a um possível desejo dos autômatos em buscar a imortalidade eles mesmos, o homem cria as Três Leis da Robótica, atrelando totalmente “a criatura” ao seu controle.
LEIS DA ROBÓTICA
1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e/ou a Segunda Lei.
À medida que a engenharia genética avança, os autômatos passam a ser confeccionados com uma substância orgânica, desenvolvendo uma aparência bastante similar à humana. Ainda mostrando ter controle sobre sua criatura, os homens criam alguns mecanismos para limitar a ação de seres tão perfeitos; em Blade Runner, por exemplo, Tyrell cria o sistema de 4 anos de vida para os Nexus 6.
O que o homem não contava era com o desenvolvimento de uma espécie de consciência nos autômatos, que passam a emular o comportamento (e até os sentimentos) humanos, pleiteando ser iguais a eles, interna e externamente (vide O Homem Bicentenário e A.I. – Inteligência Artificial).
Aí, na maioria dos casos que a literatura e o cinema nos trouxeram, eles se rebelam contra seus criadores e começam a procurar algo que ainda lhes falta para serem completos: alma, emoção verdadeira, liberdade total de pensamento e controle de seus atos.
Temos, assim, que cada criador está fadado a ser exterminado por sua criatura, tal qual a linhagem de Urano, Cronos, Zeus. E Zeus, prevendo que poderia ser destronado pelos humanos devido ao conhecimento do fogo lhes dado por Prometeu, pune o Titã com um cruel e pavoroso castigo.
No entanto, o conhecimento já havia sido repassado… O homem chega ao Olimpo e o despreza.
Através da ciência há um combate racional à fé nas divindades, tirando-lhes sua imortalidade ao forjar provas da nulidade das ações divinas entre os seres humanos. A ciência instaura a descrença.
Grandes experimentos são iniciados de forma simples
No século XX, a união entre ciência e religião contou com alguns defensores, entre eles o escritor (e pseudo-arqueólogo) Erich von Däniken. Desde que escreveu Eram os deuses astronautas?, em 1968, ele vem coletando “provas” de que diversas civilizações humanas, em todas as partes do globo, estabeleceram contato com os deuses-criadores (extraterrestres). Segundo Däniken, a vida nasceu não na Terra, mas no espaço. Somos todos filhos das estrelas.
Esse embate entre ciência e religião é um dos motes do filme Prometheus (2012), no qual o diretor Ridley Scott revisita a franquia Alien, numa película que pode ser vista tanto como um prequel (prólogo) quanto como um reboot (recomeço).
Em Prometheus, Scott retoma a teoria de Däniken, adaptando uma figura emblemática trazida pelo escritor (Pakal, o governante da cidade maia de Palenque, numa posição descrita por Däniken como a de um “astronauta conduzindo uma espaçonave”), rebatizada de space jockey – mostrada pela primeira vez em Alien: o 8º passageiro (1979) –, explicando que ele era um dos “Engenheiros”, os criadores da vida no universo.
Na franquia Alien é comum o embate entre cientistas e burocratas, ambos cumprindo ordens da empresa Weyland, mas que acabam indo além de suas funções em nome de interesses próprios. Em Alien: o 8º passageiro e Aliens: o resgate (1986), a ciência é representada pelos autômatos (Ash e Bishop), facilmente confundidos com o restante da tripulação.
Em Prometheus essa relação é mais madura, pois foi acrescentado um terceiro elemento: fé/religião. Logo, a questão aparece em dois níveis: embate e colaboração. A Primeira Encarregada da nave Prometheus, Meredith Vickers (burocrata), confronta o autômato David (cientista), e também a Dra. Elisabeth Shaw (cientista e believer). A princípio David não entende a fé que move a Dra. Shaw, mas observa que é essa fé, atrelada aos questionamentos científicos, que amplia seu instinto de sobrevivência. E como ele é um cientista, encanta-se pela oportunidade de aprender sobre a fé, com a doutora, fazendo uma escolha por si mesmo.
Outra questão que perpassa a franquia Alien é a da afirmação do sexo feminino. As mulheres contemporâneas, criadas a partir “da costela de Adão”, lutam há anos por independência e igualdade dentro de sociedades patriarcais. Como as mulheres são responsáveis pela manutenção da vida, de certa forma o poder está em suas mãos, mas elas só conseguem exercê-lo quando os homens lhes dão permissão ou quando elas resolvem tomá-lo à força (somente com a “morte” de Dallas, Ripley passa a ser ouvida dentro da Nostromo, e acha-se no direito de poder interrogar pessoalmente o computador Mãe, chamando para si a responsabilidade de deter o Alien, no filme de 1979).
Nos dois primeiros filmes da franquia, o(s) soldado(s) Alien(s) faz(em) das naves humanas um ninho/útero, propiciando a formação de casulos que alimentam a Rainha Alien (Grande Mãe), que a partir daí começa a botar seus ovos. Embora a Rainha não tenha sido concebida originalmente, sua aparição no filme Aliens: o resgate marca um ponto de virada fabuloso na trama, enriquecendo-a por levar ao clímax a luta entre duas mães (Ripley x Rainha Alien), cada uma procurando garantir a continuidade de sua espécie.
Por isso é interessante notar que quem cria as formas de vida (seres humanos, autômatos, larvas de Alien e a Rainha) no filme Prometheus é o elemento masculino (Engenheiros, Peter Weyland, David). A vida é concebida como uma experiência, igualmente como os primeiros deuses fizeram. Se essa forma de vida não agradar a seus criadores, eles a exterminam e continuam criando outras novas.
O elemento feminino, em Prometheus, é algo dúbio e mal-acabado, incapaz de gerar vida (a estéril Dra. Shaw, que prefere não servir de cobaia a uma experiência sobre a qual ela não tem controle, aborta o embrião alien de seu ventre para depois fazê-lo fecundar no ventre do Engenheiro; e Vickers, um autômato ou mulher que age de forma mecânica e fria, numa referência à Rachel, de Blade Runner, que só afirma sua feminilidade sob pressão), embora haja muitas secreções e imagens que remetam a vaginas (como a agressiva facehugger que ataca e mata o biólogo, que por sua vez havia se aproximado dela, encantado, chamando-a de “dama” e querendo cortejá-la).
E a nova forma de vida (provavelmente a primeira Rainha Alien), decorrente do aborto da Dra. Shaw, é gerada de forma acidental por um dos Engenheiros, carregando seu DNA num corpo bio-mecânico, com um exoesqueleto semelhante ao traje do Engenheiro.
É impressionante como os Aliens criam mecanismos de defesa e de preservação da espécie, anos-luz à frente de qualquer outra forma de vida conhecida. Seu único “defeito” é a necessidade de um hospedeiro para incubar a larva (facehugger) e fazê-la ganhar vida como um embrião (chestburster), o qual vai gerar uma nova Rainha Alien, matando seu hospedeiro para vir ao mundo.
Não há nada no deserto e os homens não precisam de coisa alguma
Ainda em Prometheus, vê-se a relação criador x criatura relacionada à submissão e adoração.
A sala na qual estão os recipientes com a gosma negra (protótipo da larva do Alien) é guardada por uma cabeça gigante (provavelmente o Criador-mor), o que denota um caráter sagrado ao recinto, informando àquelas formas de vida a quem elas deviam prestar reverência.
David, obedecendo ordens de seu adorado criador, Peter Weyland, e movido pelo desejo de aprender o máximo que puder sobre os Engenheiros e seus experimentos, leva secretamente para dentro da Prometheus um dos recipientes da gosma negra. Ele, então, começa a manipular a gosma negra e, num diálogo perspicaz, ganha autorização do parceiro da Dra, Shaw, Charlie Holloway (seu rival), para criar vida.
Ao mesmo tempo em que David desenvolve um tipo de sentimento pela Dra. Shaw, a relação com sua “irmã” Vickers é marcada por uma disputa pela atenção do “pai”, Peter Weyland.
Vickers pode ser um autômato com memórias implantadas, tal qual Rachel (Blade Runner), ou uma “mulher-máquina” determinada a controlar com plenos poderes o império criado por seu pai, as Indústrias Weyland (novamente a questão de o homem criar e a mulher gerenciar a “cria”). Seus lampejos de emoção só vêm à tona quando ela demonstra não entender a preferência de seu pai por David, primeiramente revelando apenas a ele sua presença na Prometheus, bem como seus planos pela busca da imortalidade.
Vickers quer ver seu pai morto, pois assim terá novamente o poder em suas mãos (castração). Ela é extremamente egoísta, e seu gesto de salvar a Dra. Shaw é o ápice desse egoísmo, pois ela sabe que sem os conhecimentos (e a fé) da médica a Terra e as Indústrias Weyland serão destruídas. Vickers não se importa com a sobrevivência da espécie, ela quer garantir seu status quo e mostrar que uma mulher (tanto faz se robô ou humana) está apta a controlar os homens.
O quão longe você iria para conseguir respostas aos seus questionamentos?
No terceiro ato de Prometheus, a relação criador x criatura ganha um tom amargo, pois a adoração e a submissão dão lugar à revolta, propiciando à criatura tornar-se criador.
A criatura quer alcançar seu Criador (Engenheiro), porque além de vários questionamentos (Dra. Shaw), deseja a imortalidade (Peter Weyland) e quer uma oportunidade de aprender mais sobre a vida (David).
Mas o Criador, descontente com o que se tornou sua criatura, só tem uma ação em mente ao encontrá-la: extermínio. E, ironicamente, é a criatura (a estéril Dra. Shaw, anteriormente “fertilizada” pela experiência de David) quem acaba lhe matando e tornando-se a responsável indireta pela gestação do ser capaz de acabar com toda a vida no universo (aqui o poder de criação feminino mostra-se destrutivo, pois é fruto de uma experiência “anormal”, contraditória à crença que embala a Dra. Shaw).
Já os autômatos podem ser “destruídos” ao ter seus sistemas operacionais deletados ou “perderem” seu criador. Entretanto, David afirma que isso não acarretaria sua morte, mas sim o libertaria (provavelmente o levaria a procurar sua “alma”, para que ele, enfim, exercesse o livre arbítrio).
Então, criaturas distintas (os cientistas Dra. Shaw e David) somam forças, através da fé, para continuar a procura por respostas, rumando até os confins do universo em busca do Criador-mor.