Há trinta anos, Michelle Pfeiffer e Daniel Day-Lewis protagonizaram uma das cenas mais sensuais da história do cinema, mostrando ser possível fazê-la apenas ao abrir os botões de uma luva e beijar o punho desvelado, em A Época da Inocência (The Age of Innocence, EUA, 1993).
O filme dirigido por Martin Scorsese – com roteiro adaptado por ele e Jay Cocks do livro homônimo, escrito por Edith Wharton, em 1920 – parece deslocado dos temas costumeiramente trabalhados por ele, pois o foco recai sobre a aristocracia nova-iorquina da segunda metade do século XIX. Porém, temos um drama romântico que tece uma crítica à teatralização da alta sociedade (círculo no qual aparentar ser era mais importante do que ser de fato), às suas enfadonhas e preconceituosas tradições e à forma como julgavam todos aqueles que não se enquadravam em suas regras de conduta social e moral.
A Condessa Ellen Olenska (Michelle Pfeiffer) é a vítima da vez. Ela está de volta a Nova Iorque, após ter abandonado o marido na Europa. Ellen é prima da jovem May Welland (Winona Ryder), que está noiva do advogado Newland Archer (Daniel Day-Lewis), membro de uma das famílias mais antigas da cidade.
Ellen é uma mulher liberal demais para os padrões da época, e sua fama cruzou o Atlântico. Fazê-la ser aceita pela nata da sociedade nova-iorquina não será fácil, mas Newland diplomática e sagazmente se esforça para conseguir tal feito, pensando no bem das famílias (a sua e a da noiva) e também porque teve um crush por Ellen, na adolescência.
Se o efebo Newland não interessava a Ellen, o homem que ele se tornou lhe é deveras atraente (seus olhos, sorrisos e gestos indicam que ela queria dar o bote com força). No entanto, ao se dar conta de sua integridade e benevolência, ela se contém e procura manter uma certa distância, pois o desejo se transformou em admiração e amor. Enquanto isso, o comedido Newland se apega à formalidade de seu compromisso com May, tentando reprimir o sentimento por Ellen até perceber que poderá perdê-la (em seu íntimo, ele apreciava os desafios às convenções, mas defendia a família e a tradição, em público, tal qual fora ensinado a fazer).
Quanto mais Ellen foge, mais a obsessão de Newland por ela aumenta. E esse jogo de gato e rato entre eles é conduzido de maneira sublime por Scorsese, através de simbolismos de cor, motivos e repetições, além de uma personagem curinga.
A personagem curinga é a matriarca Sra. Mingott (Miriam Margolyes), avó de Ellen e May. Mulher poderosa (seu corpanzil faz com que ela não consiga se locomover, então são sempre os outros que vão até ela), gentil e manipuladora. Ela cria várias situações para aproximar Ellen e Newland, como se estivesse testando ambos, mesmo após o casamento de Newland e May.
As flores, por sua vez, simbolizam as relações entre as personagens, bem como seu caráter. Isso é insinuado na belíssima cena dos créditos, assinada pelo prestigiado casal de designers Saul e Elaine Bass (eles criam um contraponto entre fusões de flores vermelhas – libido – e amarelas – ternura). Temos os pequenos e brancos lírios-do-brejo apontando para o dever social entre Newland e May, mas a delicadeza desta flor mascara o quão venenosa ela é, servindo como índice da personalidade tóxica de May; já as rosas amarelas enviadas a Ellen indicam o idealismo romântico de Newland, que é um homem cauteloso – ele, inclusive, fica horrorizado quando vai à casa de Ellen e encontra um buquê de rosas vermelhas, presente do mulherengo Julius Beaufort (Stuart Wilson), as quais ela logo dá um jeito de se livrar.
Patti Bellantoni, no livro If It´s purple, someone´s gonna die: the power of the color in visual storytelling, afirma que o amarelo reflete a dinâmica da relação Ellen-Newland. Isso porque, para Bellantoni, o amarelo é a “cor dos contrários”, estando associado tanto à energia vital, exuberância, alegria, ansiedade, obsessão, como à cautela e inocência, dependendo de seu grau de saturação (o amarelo pode ser idílico ou ácido). Também entra em cena a cor vermelha, representando a compulsão e tensão entre eles. Sobre a presença do vermelho, neste filme, Bellantoni afirma ter sido muito bem empregada por Scorsese, que soube tirar proveito do “Vermelho Vitoriano” – na Era Vitoriana, o vermelho predominava tanto nos teatros quanto nas salas de estar das residências da aristocracia, contrastando com a alta rigidez e polidez dos costumes característicos da época, pois é uma cor que evoca libido, agressividade e compulsão, embora também seja elegante e romântica.
O terceiro recurso são as repetições de cenas com lareiras, atuando como elemento indiciático do sentimento das personagens. Na cena em que Newland tenta convencer Ellen a não pedir o divórcio, vemos a madeira caindo dentro da lareira, como se expressasse a decepção dela em relação à postura dele. Quando Newland vai encontrar Ellen na casa de campo dos Van der Luyden, fica subentendido que ele acendeu a lareira (simbolizando ter se dado conta de estar apaixonado por Ellen, e idealizando uma reciprocidade por parte dela). Preocupado ao saber que o Conde disse aceitar Ellen de volta, nas condições dela, Newland sente necessidade de esclarecer tudo. Ele teme que ela volte para o marido, e Ellen lembra da urgência dele em se casar com May. A conversa se dá com a lareira acesa. Enquanto Ellen se afasta da lareira, Newland se aproxima e confessa que a ama (uma das cenas mais tocantes do filme, junto com a da carruagem/luva mencionada no início do texto, pois aqui entendemos o quão grande é o amor de Ellen por Newland, a ponto de a personagem sacrificar seus sentimentos para não rebaixá-lo à condição na qual ela se encontra, de pária social).
As cenas de lareira também servem para desvelar o caráter de May; o quão dissimulada, mesquinha e manipuladora ela é, apagando a falsa imagem de inocência e pureza que somos levados a acreditar serem atributos da personagem. O maior exemplo disso está na cena em que Newland, já casado, pretende abrir o jogo com May sobre seu amor por Ellen. May, que está perto da lareira, informa ao marido (numa atitude passivo-agressiva) sobre o retorno da prima à Europa – nesse momento, a madeira dentro da lareira cai em cinzas, expressando a decepção de Newland (da mesma forma que anteriormente acontecera com Ellen). May pega o atiçador calmamente para rearranjar os tocos de madeira por lá, enquanto fala sobre a carta que Ellen a escreveu, colocando uma pá de cal na relação do marido com sua prima.
“A verdadeira solidão é viver entre essas pessoas amáveis que só querem que você finja”, pontua Ellen. Numa época hipocritamente pudica, Newland e Ellen são os genuínos inocentes. Eles ousam ser sinceros e isso os enfraquece perante os cruéis estratagemas dos joguinhos aristocráticos, por isso são presas fáceis de manipular.
A conturbada história de amor entre Newland e Ellen pode ter servido de base para o cineasta chinês Wong Kar-Wai construir a relação entre Chow Mo-wan e Su Li-zhen, em Amor à Flor da Pele (Fa yeung nin wah /In the Mood for Love, China, 2000), um filme ainda mais melancólico. Aliás, o cinema de Kar-Wai é marcado por arrebatadoras tensões amorosas.
No caso de Newland-Ellen, Bellantoni lembra que ambos preferiram viver com a ideia de ficarem juntos, sem jamais concretizar os fatos, principalmente porque Newland é uma personagem que sonha, e suas ações permanecem dentro dos limites dourados de sua mente, praticamente evocando Nelson Gonçalves: “eu não quero e nem peço para o meu coração, nada além de uma linda ilusão”.
Para amplificar a tristeza que A Época da Inocência nos transmite, Scorsese o dedicou a seu pai, falecido durante o processo de montagem, no dia 23 de agosto de 1993. E dia 31 de agosto, o filme estreou no Festival de Veneza.