Celebremos os Quadrinhos dos Anos 10

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Ainda me lembro da primeira vez que li uma tirinha do André Dahmer. Embora não consiga precisar o ano, o desenhista carioca estava dando os primeiros passos com sua série Malvados, que se tornou célebre com o passar do tempo e novos contornos da internet.

À época, eu tinha um blog com alguns amigos, todos já apaixonados pelo trabalho de Dahmer, e pedimos a ele uma entrevista. Éramos um grupo de quatro ou cinco absolutamente desconhecidos, apenas fãs querendo uma conversa com seu novo desenhista favorito. Ele aceitou o pedido e respondeu de maneira generosa com a mistura de acidez, perspicácia e candura que lhe é peculiar.

Algum tempo depois, as tarefas do cotidiano sufocaram nossas atividades com o blog e recentemente a internet o defenestrou de vez. Não há mais o registro de nossa conversa com o desenhista.

Nos últimos dias, André Dahmer andou twitando sobre a série Quadrinhos dos Anos 10. Disse ser ela a mais longa que já tinha produzido, chegando a 500 tirinhas. Além disso, em 2011, uma tirinha sua apareceu na prova do Enem. Eu, que costumava usar essas tirinhas em minhas aulas de português e redação, lembro do quanto fiquei feliz por isso. André Dahmer merecia muito esse tipo de reconhecimento. A série virou livro em 2016 e venceu o Prêmio HQ Mix em 2017, além de ser indicada ao Prêmio Jabuti como melhor História em Quadrinhos.

Estamos agora no confuso ano de 2022. Um ano de faltas, de insegurança política, econômica e social, em que temos nos comportado mal e sido vítimas de nossas péssimas relações interpessoais, com a tecnologia e com o mundo a nossa volta. É curioso ver como a grande maioria das tirinhas de Quadrinhos dos Anos 10 envelheceu bem. Dahmer parece ter compreendido e traduzido em breves histórias o nosso tempo e a nossa sociedade como poucos.

A acidez, a mordacidade e capacidade de concisão de seu trabalho nos trazem os reflexos de uma década marcada pela egolatria, pelo individualismo exagerado, o cruel mundo corporativo, a dependência de remédios e a prisão pela falsa liberdade das redes sociais, entre tantas outras marcas destes tempos.

Dahmer consegue ser engraçado de um jeito que muitas vezes beira à tristeza, como quem diz o velho bordão de Ziraldo: “só dói quando eu rio”, de forma nova e apenas possível para quem aceita olhar para seu próprio tempo sem paixões ou desprezos que turvem os olhos.

E é por esse olhar tão certeiro que Dahmer e alguns outros quadrinistas têm (Laerte, Adão Iturrusgarai, Brum, além do argentino Liniers e do Uruguaio Troche, que formam meu panteão particular) que podemos dizer que as tirinhas são as crônicas de nosso tempo. Nessa mistura de linguagens, entre pessoas que buscam textos cada vez mais curtos, é bom saber da existência de desenhistas como esses, que pensam nosso tempo e olham para nós, que nos compreendem e traduzem.

Celebremos os Quadrinhos dos Anos 10. Celebremos sempre os quadrinhos destes tempos tão nebulosos.


CRÉDITO DA FOTO DE CAPA: Marizilda Cruppe

Theo Alves

Theo Alves

Theo G. Alves nasceu em dezembro de 1980, em Natal, mas cresceu em Currais Novos e é radicado em Santa Cruz, cidades do interior potiguar. Escritor e fotógrafo, publicou os livros artesanais Loa de Pedra (poesia) e A Casa Miúda (contos), além de ter participado das coletâneas Tamborete (poesia) e Triacanto: Trilogia da Dor e Outras Mazelas. Em 2009 lançou seu Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis (poesia e contos); em 2015, A Máquina de Avessar os Dias (poesia), ambos pela Editora Flor do Sal. Em 2018, através da Editora Moinhos, publicou Doce Azedo Amaro (poesia).

Como fotógrafo, dedica-se em especial à fotografia documental e de rua, tendo participado de exposições que discutiam relações de trabalho e a vida em comunidades das regiões Trairi e Seridó. Também ministra aulas de fotografia digital com aparelhos celulares em projetos de extensão do IFRN, onde é servidor.

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