Bairrismo cervejeiro (no mercado artesanal)

bairrismo cervejeiro

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Saudações, nobres bebedores de todas as partes do nosso Brasil varonil!

O texto de hoje adveio da sugestão do estimado degustador e confrade Francisco Maestri, de Santa Catarina! Agradeço pela contribuição e pela sugestão de um tema tão fundamental, sob a ótica social e cultural (cervejeira também, inclusive)!

Ao se falar em bairrismo está se falando de a preferência, ou a prevalência, de um determinado Estado ou região sobre outro. Como se a mera origem da procedência do produto fosse um sinal inexpugnável de qualidade.

O Brasil sofre de bairrismo em várias instâncias, na música, no futebol, nas artes em geral, eu diria. Não seria diferente no universo cervejeiro (ainda mais no universo das cervejas artesanais, pretensamente mais “plural” e “diverso” – pura balela).

O bairrismo cervejeiro é uma realidade (social, política e cultural), e por isso mesmo, é necessário que seja discutido (ainda mais sob o ponto de vista de um não-privilegiado). É o tipo de debate que auxilia a considerar melhor a qualidade em detrimento do local onde vem a cerveja.

Assim, convido todos a abrirem uma cerveja local para poder conhecer um pouco mais sobre as peculiaridades do bairrismo no mundo da cerveja artesanal.

Bairrismo Cervejeiro: O Que É?

Sempre bom trazer uma conceituação mínima do principal termo a ser debatido ao longo do texto.

Por bairrismo, podemos entender a defesa de interesses do “bairro” ou de sua terra tanto por atitudes de defesa exacerbada de suas alegadas virtudes ou, por analogia, da terra natal de alguém.

Quando aplicado ao panorama cervejeiro, o bairrismo quer dizer que se tenta respaldar a superioridade de uma cerveja (ou de uma cervejaria) pelo simples fato de ela proceder de um Estado ou de uma cidade específica.

Por bairrismo cervejeiro podemos compreender a extensão máxima do conceito do “beba local” (ou, beba somente de certo local). Como se o simples fato de uma cerveja ser oriunda de uma determinada região isso fizesse com que ela fosse necessariamente boa ou melhor que as suas demais congêneres.

Bairrismo no Eixo Rio-São Paulo

Historicamente, a predominância cultural do eixo Rio-São Paulo sempre foi exponencial. Uma de suas marcas mais prevalentes é o fato de que muitas pessoas na faixa dos 45 aos 60 anos, mesmo morando em outras regiões do país, torcem pelos times de futebol desse eixo.

Esse dado histórico (não estou defendendo que a pessoa tenha que torcer por um time de onde mora, eu mesmo sou flamenguista) reforça a noção de que elementos culturais podem ser forjados “artificialmente” como superiores e se perpetuam por bastante tempo.

No cenário cervejeiro, temos, diferentemente, uma ampla predominância das cervejarias artesanais de São Paulo sobre todo o Brasil. Ademais, a predominância é tão expressiva que as cervejarias do Rio de Janeiro são quase que irrelevantes no cenário nacional, e possuem pouca força em âmbito regional.

A Prevalência Paulista na Cultura Cervejeira

Antes de a AmBev tentar engolir o mercado artesanal, São Paulo já tinha algumas cervejarias artesanais consolidadas (no espectro regional, pelo menos), como, por exemplo, a Cervejaria Colorado e a Cervejaria Invicta. Pitorescamente, ambas do interior do Estado.

Sequencialmente, com a expansão mercadológica após 2015, o cenário paulista cresceu vertiginosamente mais. A Cervejaria Dogma, junto com a Croma, foram as principais representantes nesse crescimento de grande monta, e ajudaram a catapultar o cenário paulista como um dos mais relevantes em termos nacionais (quiçá, o mais).

A partir daí, se não houve um predomínio nacional por completo das cervejarias paulistas, podemos dizer que elas representam ao menos a maioria do “peso” cervejeiro na cultura nacional.

Tanto na capital do Estado, quanto no interior, a cada dia surgem novas cervejarias artesanais, de maneira que São Paulo concentra a maior parte dos bares especializados dedicados ao segmento.

Nesse tocante, o Empório Alto dos Pinheiros (EAP) é a meca do cenário nacional, e, certamente, um dos bares no Top 10 mundial, demonstrando, derradeiramente, porque o Estado de São Paulo é a grande referência nacional em termos de cultura cervejeira.

A Incipiência Carioca no Cenário Nacional

Apesar de em vários aspectos culturais o embate entre Rio de São Paulo ser equilibrado, na cultura bairrista cervejeira não há o que se debater: o Rio de Janeiro perde de forma escandalosa. Aliás, perde para São Paulo e para outros Estados da Federação também.

Se houve alguma relevância cervejeira para o Rio de Janeiro no cenário nacional, foi nos bons tempos em que a Cervejaria Hocus Pocus conseguiu algum destaque, principalmente com a sua NEIPA inovadora na época, a Overdrive (concorrendo com a Rizoma da Dogma de igual para igual), e com suas ótima Pastry Stout, a Rabbit Hole.

Todavia, com mudanças na receita, e pasteurização de parte de sua produção, houve um declínio severo por parte da Hocus Pocus, e o cenário carioca, que já não era tão expressivo, minguou ainda mais. A Cervejaria Quatro Graus chegou a ter certo destaque com sua Anthrax nos idos de 2017, mas não se consolidou como um expoente também.

Com o ostracismo da sua melhor cervejaria (Hocus Pocus), as demais, que antes apenas faziam alguma figuração, não conseguiram minimamente propor uma disputa com as cervejarias de São Paulo. Deixando, portanto, mais aparente ainda a incipiência carioca no cenário nacional, e até mesmo no mercado regional, dada a sua pouca expressividade.

Pioneirismo Mineiro e a sua Consolidação Cervejeira

O cenário cervejeiro em Minas Gerais sempre foi promissor, criativo, e de certa forma, pioneiro, também. Seu primeiro grande expoente foi a Cervejaria Wäls, que se consolidou como uma das primeiras cervejarias artesanais do Estado a ter uma maior projeção, inclusive em dimensões nacionais, sendo depois capitulada pela AmBev.

Com o tempo, o cenário mineiro foi crescendo ainda mais, e três cervejarias de ponta apareceram. A Koala San Brew e Tarin, ambas na região metropolitana de BH, e a Cervejaria Spartacus, na cidade de Juiz de Fora, no sul do Estado.

Podemos dizer que elas já se colocaram em um momento de maior dispersão e difusão da cultura cervejeira no cenário mineiro. Todavia, o grande ponto de destaque delas sempre foi a criatividade e a inovação, ao passo que a Wäls, por seu turno, já se focava em expor seu “tradicionalismo pioneiro”, em termos de produção artesanal.

O cenário da cultura cervejeira em Minas Gerais sofreu um certo abalo significativo com o caso da Cervejaria Bäcker. Quando, nos primeiros dias de 2020, muitas pessoas foram vitimadas pelo consumo da cerveja Belorizontina e enfrentam os efeitos nocivos da intoxicação provocada por dietilenoglicol.

Todavia, quase dois anos após o ocorrido, pode-se dizer que a cena mineira está mais forte do que nunca, e concorre para desbancar a predominância paulista.

Fora do Eixo: Do Sul ao Nordeste

Nem só de cervejas do Eixo Rio-São Paulo, ou da dobradinha Café (São Paulo) com Leite (Minas Gerais) que se vive o brasileiro. Há muitas preciosidades da cultura cervejeira artesanal espalhada por outros Estados de Norte (ou, Nordeste, melhor dizendo) ao Sul.

Não é porque existe certa prevalência paulista no cenário nacional que não existem boas cervejas e ótimas cervejarias fora dos centros mais badalados (do Sudeste).

A Força Sulista: Da Tradição à Inovação

Existem algumas cervejarias mais antigas no sul do país, a exemplo das gaúchas Tupiniquim e Seasons, e novos talentos, como a Salvador e a Dude Collective Brewing que em nada ficam devendo às melhores cervejarias paulistas.

Tanto a velha-guarda gaúcha, quanto os novos talentos de Caxias do Sul, são ótimos exemplos de que há boas cervejas e ótimas ideias cervejeiras em execução na porção mais meridional do Brasil.

Ademais, os outros Estados do sul também possuem seus representantes, a citar as criações ácidas da Cozalinda em Santa Catarina e as já consolidadas elaborações desviantes da Bodebrown no Paraná.

Engraçado notar que, de forma intrarregional, há um bairrismo em defender as cervejas gaúchas como melhores que as dos demais Estados do sul do Brasil. Algo totalmente inócuo, ressalte-se.

A Garra Nordestina

Sabidamente, o Nordeste é a região mais ridicularizada pelas demais, principalmente pelos “sudestinos” e pelos sulistas também, algo fundado em uma flagrante pseudo-supremacia esquizofrênica elitista de origens coloniais e xenófobas.

Não seria diferente no cenário cervejeiro nacional. Já que pouquíssimas cervejarias advindas do Nordeste sequer chegam aos “grandes centros” nacionais. Aliás, algumas que se arriscam, precisam ser “ciganas” no Sudeste para lograr algum êxito.

A despeito dessa noção retrógrada de que não há boas cervejas no Nordeste, algumas cervejarias despontaram, inicialmente no Ceará (5 Elementos e a Bold Brewing), e em Pernambuco (DeBron e a Ekäut).

Infelizmente, há de se apontar, com certa franqueza, que essas 4 cervejarias acabaram em uma espiral descendente no último par de anos, algo flagrantemente agravado pela pandemia da Covid-19. Hoje elas ocupam pouco destaque regional.

Todavia, algumas outras cervejarias nordestinas acabaram por florescer ao mesmo tempo, como foi o caso da MinduBier, de Lauro de Freitas, na Bahia, e da natalense, HopMundi, do Rio Grande do Norte. Dois bons exemplos de que boas cervejas também são produzidos nas porções mais cálidas do Brasil.

Saideira

Soa natural que cada um tenha “orgulho” das cervejas de sua cidade ou de sua região, essa é a essência do movimento “Beba Local”. Todavia, quando esse sentimento se transforma em uma defesa desmesurada e impositiva de uma suposta superioridade, ele se transmuta em bairrismo cervejeiro.

Claro que o bairrismo é algo muito arraigado à cultura nacional, como uma forma de separação e exclusão dos menos favorecidos, estranho seria se esse modelo não fosse replicado também nos moldes cervejeiros.

Todavia, é importante denotar que, apesar do predomínio paulista no mercado nacional como um todo, o Rio de Janeiro aparece como um Estado muito menos importante para a cultura cervejeira. Nesse compasso, algumas cervejarias do Sul e do Nordeste se destacam bem mais do que as cariocas no cenário nacional em termos de qualidade. Ainda que a predominância paulista seja salutar.

Recomendação musical para degustação

Se é para combater o bairrismo cervejeiro, vamos fazer isso também musicalmente!

Assim, a recomendação musical de hoje será algo autenticamente nordestino, para quebrar o monopólio cultural “sudestino”.

Vamos de Forró! O estilo musical que foi reconhecido dia 09 de dezembro de 2021 como patrimônio cultural imaterial brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), dada a sua dimensão social e cultural de âmbito nacional.

A música recomendada é a clássica Rosa dos Ventos, do Rei do Forró, Alcymar Monteiro.

Saúde!!

Ps. As regiões Norte e Centro-Oeste não foram sumariamente ignoradas (por bairrismo), eu apenas não possuo nenhum conhecimento sobre o cenário das regiões, nem tive a oportunidade de provar nenhuma cerveja oriunda delas.

Logo, não ousaria falar do que não detenho o mínimo conhecimento.

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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