Olá, cervejeiros, saudações!
Quem acompanha as postagens no blog há algum tempo percebeu que as últimas colunas foram direcionadas àqueles que estão iniciando no fantástico mundo das artesanais. Então, hoje, para fazer algo diferente, vou escrever um texto para aqueles que já estão em #otopatamar, digamos, intermediário/avançado.
Digo isso porque o tema de hoje aborda como muda (se é que muda) o nosso gosto por cervejas com o passar do tempo. Será que aquela cerveja artesanal que você achava o máximo assim que conheceu este mundo ainda é tudo isso? Será que hoje aqueles primeiros estilos que você provou ainda te fazem sentir aquele gostinho de quero mais ou viraram lugar comum e não conseguem mais empolgar tanto assim?
Certamente que, tomando por termos biológicos, não é nosso gosto que muda, e sim nossa capacidade de conseguir sentir certos sabores com maior ou menor intensidade que muda com a nossa idade (envelhecemos, deixamos de apreciar o doce e passamos a sentir mais o amargor – da nossa própria existência). Então, este não será o ponto de partida, isso seria muito simplório para desvendar todos os segredos desse tema.
Vamos partir de uma premissa mais “intelectual” por assim dizer e vamos deixar no ar a dúvida: seu gosto mudou ou não mudou, muda ou não muda?
Gosto, um juízo estético
Faremos brevemente uma introdução teórica sobre o tema para que seja possível aplicá-lo ao mundo da análise sensorial das cervejas. Quando falamos de “gosto” estamos falando de um julgamento que somos capazes de fazer sobre algo, no caso, sobre uma cerveja ou um estilo cervejeiro. Todo julgamento é tido como sendo um juízo, e no caso do juízo de gosto, por se referir às sensações, é um juízo estético.
Kant[1] fala que o juízo de gosto se refere a uma complacência, ou seja, diz respeito à adequação ao que se sente ao bem-estar causado por aquilo que é sentido. Este juízo também é reflexionante, pois o objeto que causa a sensação já é pré-determinado (ainda que você nunca tenha tomado aquela cerveja ou aquele estilo em específico, ele já esta posto diante de ti).
Todavia, esse juízo de gosto é necessariamente desinteressado, pois o prazer gerado pelo objeto (cerveja) é ocasionado pela faculdade da imaginação em acordo com o entendimento do sujeito, o que gera o conhecimento sobre aquilo que provoca o prazer.
O conhecimento advém de um livre jogo dessas faculdades e é um ato de síntese entre entendimento e sensibilidade, possibilitado pela imaginação. Ele também é um juízo sem determinação conceitual, não se determina a finalidade quanto ao objeto, ou seja, ninguém toma a sua cerveja para um fim em específico (e se você toma apenas para se embriagar está fazendo isso errado #bebemenosbebamelhor).
Há de se compreender que este juízo de gosto é universal, pois todo sujeito deve ser capaz de julgar da mesma forma, uma vez que as faculdades se harmonizam acerca do objeto e não de elementos subjetivos já dados, e também é um juízo necessário, porque todos devem poder concordar acerca da universalidade da abrangência de um juízo estético proferido.
Com base nessas premissas acerca do juízo de gosto, deve-se compreender que o gosto não muda, pois a sensação ocasionada pelo objeto não é variável, desde que o próprio objeto não sofra alterações.
O gosto por não ser conceitual também não estará atrelado as faculdades subjetivas do sujeito, como dito anteriormente, que são as biológicas, tais como idade, capacidade das papilas gustativas, dentre outras. O sujeito não interfere na sua capacidade de gostar do objeto colocado para seu juízo de gosto.
E aquela cerveja que você amava e hoje não dá bola?
A partir dessa breve introdução teórica, podemos depreender que o juízo de gosto não muda, mas isso não quer dizer que o sujeito não posso se enganar sobre aquilo que ele formula em sua imaginação como sendo aquilo que ele gosta.
Dito de outra maneira, aquele seu tio botequeiro que só toma Brahma de Agudos jura que aquela é a melhor cerveja do mundo. Esse é um juízo de gosto válido? Certamente que não, pois o que está em jogo são as paixões de um botequeiro frente a uma cerveja de massa, que tem no seu currículo fatos como: ter sua qualidade duvidosa, materiais de segunda qualidade e instruções técnicas de ser tomada extremamente gelada.
Mas ele não erra porque quer. Para citar outro filósofo, desta vez um mais antigo, Platão[2], “não se erra por querer, apenas se erra por ignorância”; ou seja, seu tio erra porque não conhece outras cervejas ou outros estilos melhores.
Este é outro ponto fundamental, aquilo que costumamos emitir como sendo o nosso gosto atual, ou melhor, como sendo o nosso “bom gosto” atual, está e sempre estará limitado pela nossa capacidade daquilo que temos conhecimento até então.
No caso figurativo do tio botequeiro, se ele só conhece Brahma, Skol, Schin e Glacial. Dentro do universo dado, é possível emitir o juízo de gosto relativo ao que se tem como universo de amostragem (mas ainda teria minhas dúvidas se seria a Brahma de Agudos a melhor de todas…).
Confesso que algo semelhante aconteceu comigo em relação à Punk IPA da Brewdog, que por volta de 2015/2016 era o que se tinha de mais avançado em termos de IPA em Natal e era vendida por absurdos 34 auxílios emergenciais no Carrefour. Era o auge, mas hoje em dia, eu relutaria em pagar 15 ações da Petrobras num exemplar dela.
As cervejas mudam, mas não te informam
Por vezes, o que muda não é o seu gosto, caro leitor, e sim a própria cerveja, mas as cervejarias não te informam isso (com a devida clareza).
Explico melhor: por serem produções artesanais, nem sempre é possível se utilizar dos mesmos insumos de produção em todos os lotes de uma mesma cerveja. Ou, não é possível ter um controle tão rigoroso nos insumos e nos lotes (já que alguns elementos produtivos variam por safra). Por vezes trocam os lúpulos utilizados tentando manter as mesmas características de amargor e de sabor (cítrico, herbal, floral, etc.).
Assim, a safra de um ano de um determinado lúpulo pode ser melhor que a de outro ano, e por mais que o mesmo lúpulo seja utilizado em diferentes lotes de uma mesma cerveja, o resultado final pode acabar sendo alterado sensivelmente.
Quando existem essas variações de lotes, seja por causa dos insumos utilizados ou por causa das safras, o problema não é na sua capacidade de emitir uma análise sensorial ou um juízo de gosto pertinente, e sim, porque, por se tratar de um produto artesanal, essas pequenas variações são possíveis e (até certo ponto) plausíveis, sem que haja uma necessária depreciação no produto.
O Caso da Dreamin
Um dos exemplos mais claros desta variação a cada lote e que pode ser notado a partir das fotos que servem de ilustração é a Dreamin da cervejaria Dogma. Foram 3 lotes até o momento.
O primeiro lote foi em outubro de 2019, era uma cerveja muito suculenta (juicy), com aparência turva (hazy), muito frutada, macia, sem harsh, com um equilíbrio bem acertado entre notas cítricas e herbais. Era realmente uma NEIPA muito bem executada e muito gostosa.
O segundo lote desta cerveja foi lançado pouco tempo depois, em fevereiro de 2020, e o resultado foi muito diferente do que se viu anteriormente. Uma coloração bem mais escura, com um perfil bem mais limpo, sem nenhuma turbidez, uma coloração opaca e sem brilho, lembrando cobre. A diferença, no entanto, não foi apenas visual. O perfil sensorial da cerveja foi totalmente alterado, ficou muito mais adocicada, perdeu muito de seu aroma, e até a carbonatação estava alterada. O resultado foi uma cerveja totalmente diferente, tendendo mais para um perfil de West Coast IPA que de NEIPA como foi apresentado no primeiro lote.
O terceiro e último lote da Dreamin foi lançado exatamente um ano após o primeiro, ou seja, em outubro de 2020. E comparativamente, em termos qualitativos, este seria o lote intermediário entre o primeiro e o segundo. Ou seja, não é tão ruim, mas também não foi empolgante como o primeiro. Estava visualmente bem no padrão NEIPA, próximo do que foi visto no primeiro lote, mas em termos gustativos carecia de harmonia, tinha um harsh altíssimo, dulçor desmedido, perfil herbal destoante e muito forte, ao passo que as notas cítricas acabaram encobertas no conjunto, o qual não ornou bem.
Este foi um caso clássico de uma cerveja que passou por transformações profundas de lote para lote, no qual houve um claro decaimento na qualidade do produto final, e que serve de exemplo como nosso (juízo de) gosto não muda, mas que as cervejarias alteram as composições das cervejas de lote para lote e dão a falsa sensação que nosso gosto mudou.
Saideira
Nossas vivências cervejeiras, novas experiências, novos estilos sempre servem de incremento para o nosso universo de abordagem e de apreciação.
Por vezes, julgamos que gostamos de alguma cerveja ou de algum estilo, colocando-o como sendo o melhor, quando ainda não temos a devida apuração técnica para tanto.
Então, com embasamento teórico em Kant: não, nosso juízo de gosto não muda, nossa apreciação estética depende do objeto e não de nossas apreciações subjetivas.
Por isso que é sempre um juízo necessário e universal, sobre o qual todos possuem a mesma capacidade de concordar. Ou seja, gosto não se discute, bom gosto se aclama.
No entanto, não podemos esquecer também que, por motivos logísticos, de oferta e de capacidade de produção, por vezes, as cervejarias alteram as composições das cervejas, fazendo com que elas apresentem mudanças de lote para lote, de modo que se cria a falsa impressão que nosso gosto mudou (para pior ou para melhor), sendo que quem, na verdade, mudou, foi a cerveja, objeto de nossa análise, por consequente, altera-se o juízo de gosto.
Música para degustação
E aí, o que acham? Nosso gosto muda ou não muda? O seu já mudou? Para exprimir essas possibilidades, vamos de Changes, um clássico do Black Sabbath.
https://www.youtube.com/watch?v=sa4bq_Lj0mg
Saúde!!
[1] KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade de Julgar. Trad.: V. Rohden e A. Marques. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 256.
[2] PLATÃO. Sofista, 229c1-9. São Paulo: Abril, 1972.
FOTO: publicada no site Revista Malagueta.