Chamava-o Zé Maria. Foi com este nome que o conheci na roda de conversa da livraria, onde, às vezes, ele aparecia, sempre interessado em literatura. Apreciava muito a ficção científica e o realismo fantástico, como, aliás, gostava de dizer, mas não escondia o seu entusiasmo por escritores portugueses. Eça de Queiroz, Miguel Torga, Raul Brandão, tantos outros.
Certa feita recomendou-me a leitura do romance “Mau Tempo no Canal’, de Vitorino Nemésio, cuja ação transcorre no arquipélago dos Açores. Entre parênteses: José Maria descende do açoriano Rodrigo de Medeiros Rocha, notável desbravador que, nos meados do segundo quartel do século XVIII, em companhia do irmão Sebastião, estabeleceu-se no Brasil, mais precisamente na Ribeira do Sabugi, região do Seridó, sendo ambos considerados os troncos da família Medeiros no Brasil.
Afora os escritores já mencionados, José Maria era fã de Jorge Luís Borges e Thomas Mann. Para ele não existia, na ficção universal, personagem maior do que Bartleby, de Herman Melville.
Evidente a qualificação intelectual do leitor inveterado que era José Maria. Sempre o vi assim, amigo dos livros, mas nunca suspeitei que ele tivesse veleidades de escritor. Cauteloso, escrevia em surdina, guardava na gaveta o fruto que, com certeza, considerava ainda não de todo maduro.
Mas eis que, em 2007, surgiu em cena, pronto para a aventura literária, com o romance “O Golem do Potengi”, em que deixou patente sua extraordinária capacidade imaginativa, na criação de um pequeno mundo ficcional entre a realidade cotidiana, a história e o fantástico.
A seu pedido escrevi um texto para a orelha do livro, no qual moldei esta nota.
Além de “O Golem do Potengi”, José Maria publicou, de sua autoria, em forma de livro, um alentado estudo sobre a Ordem Rosacruz, da qual participava.
Nosso amigo José Maria Figueiredo Rocha já não era tão-somente o leito voraz, o servidor público formado em Ciências Exatas (Matemática e Física), o paulista potiguarizado, filho de seridoenses, vivente da cidade do Natal; era também o escritor Figueiredo Rocha.
Personalidade sui generis: introspectivo, retraído, de poucas palavras a não ser quando estava com os amigos mais próximos. Além da inteligência e cultura, que lhe eram peculiares, revelava extrema sensibilidade. Dele se poderia dizer o que Rimbaud disse consigo mesmo:
-Par delicatesse j’ai perdu ma vie.
Numa madrugada de maio passado, José Maria se foi desta vida por vontade própria. Deixou um vazio no meio cultural natalense, é claro. E muitas saudades.
Pedro Vicente
A partida inesperada de Zé Maria lembrou-me a de outro amigo, frequentador da roda de conversa na livraria – Pedro Vicente da Costa Sobrinho, que se foi para o Outro Lado nos idos de 2013.
Intelectual conceituado, autêntico scholar (com alma de poeta), Pedro Vicente era uma grande figura humana. Conheci-o, ainda, nos bons tempos das “Cocadas”, quando mal saídos da adolescência, fazíamos de uma praça, assim apelidada, no centro de Natal, a nossa primeira universidade. Vivíamos os anos 60, a mais bela década do século XX. Tempos de Sartre e Bertrand Russell; tempos da Bossa Nova, dos Beatles e do Tropicalismo; de Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Câmara Cascudo; tempos do Cinema Novo…
Em meio à agitação política, mesmo nos primeiros anos da Ditadura Militar, debatíamos do alto das “Cocadas”, os grandes temas na crista da onda, inclusive os de natureza político-ideológica. Um jovem, então, destacava-se pela palavra fluente, já prenunciando o causeur que viria a ser. Seu nome despertou-me especial atenção: Pedro Vicente. Macauense, tivera larga vivência no Recife antes de vir morar em Natal. Dava gosto ver como ele discorria sobre os mais variados assuntos, agitando idéias, criticando autores e livros, comentando os fatos do dia. Indicou-me autores de quem eu nunca ouvira falar, como, por exemplo, Bulgakov, de “O Mestre e Margarida”.
Convém salientar que, nos debates em que se envolvia, com paixão, mantinha-se sempre no plano das ideias; nunca resvalou para retaliações pessoais. Falar mal da vida alheia, jamais! Sem dúvidas, foi um dos melhores “professores” naquela Universidade do Grande Ponto.
Depois, perdi-o de vista. Tinha ido estudar na União Soviética — disseram-me. Mais tarde tive notícia do amigo: estava no Acre. Fascinado pela Amazônia, ali — já graduado em Ciências Sociais, pela UFRN — ocupou cargos de relevo — Diretor do SENAC, Diretor do SESC, além de exercer o magistério e desempenhar importantes funções na administração da Universidade Federal do Acre.
De volta a Natal em começos da década de 1990, retomou o exercício do magistério — Professor da UFRN — e foi, algum tempo depois, Diretor da Editora da UFRN. Nestas funções, em dois períodos, realizou notável trabalho, tendo, inclusive, implementado plano editorial que marcou época. Dezenas e dezenas de livros e publicações outras vieram a lume graças ao editor doublé de escritor.
Também na condição de Diretor da Editora da UFRN, o Professor Pedro Vicente prestou relevante serviço à Academia Norte-rio-grandense de Letras, possibilitando a edição de quatro números de sua revista.
Eleito por unanimidade para ocupar a cadeira nº 31, cujo patrono é o Pe. Brito Guerra, essa escolha teve o sabor de uma consagração. Com efeito, deixou implícito o reconhecimento da totalidade dos acadêmicos a toda uma obra literária, da qual sobressaem quatro livros/solo e três coletâneas organizadas pelo autor. Duas das mencionadas obras — vale frisar — constituíram-se, originariamente, em teses acadêmicas: “Capital e Trabalho na Amazônia Ocidental” (São Paulo: Editora Cortez, 1992) e “Comunicação Alternativa e Movimentos Sociais na Amazônia Ocidental” (João Pessoa: Editora da UFPB, 2001), ambas, como as demais, bem recebidas pela crítica.
Muito poderia ser dito a respeito destas duas obras. Todavia, aqui não se trata de estudo crítico, é obvio. Um comentário, tão-somente. Quero referir-me ao fato de que, ao contrário da maioria dos amazonólogos, quase todos fascinados pelo “Inferno Verde”, Pedro Vicente sensibilizou-se com as lutas sociais e as condições políticas e econômicas, abrindo caminho num campo ainda pouco trilhado.
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Devo ressaltar um aspecto que me parece de grande importância na personalidade intelectual de Pedro Vicente, além das virtudes evidentes — inteligência e integridade. É que tendo sido um professor-doutor voltado para o estudo das ciências humanas e sociais, também foi um artista em potencial, um poeta, embora nunca tenha cometido versos, que eu saiba. Tais qualidades estão presentes, de modo especial, em dois dos seus livros menos divulgados: “Exercícios Circunstanciais” (Natal: Edições Coivara, 1997) e “Outras Circunstâncias” (João Pessoa: EDUFPB, 2002).
Confesso que são os livros de minha predileção, em toda a sua obra. Seus títulos sinalizam uma despretensão, que só pode ser entendida como prova de modéstia. Pois, de circunstanciais no sentido de coisa datada ou de interesse transitório, esses escritos não têm nada.
A temática é variada, e bem demonstra a versatilidade do autor, indo, com desenvoltura, das “Reflexões de Marx sobre O Estado no Livro de “O Capital” a “Um Olhar sobre o Olhar de Morse”, entre outros assuntos, no primeiro livro; e de “O Escritor Nordestino: um Itinerante à Procura de Editor”, a “Cascudo, Historiador da Comida”, no segundo.
Os “exercícios” também revelam qualidades especiais do autor, como, por exemplo, o gourmet e o cinéfilo, no admirável “Cinema e Gastronomia: A Festa de Babette”, sem dúvidas, ponto alto do seu ensaísmo.
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Por vezes, Pedro se tornava polêmico, no debate de ideias e fatos com os amigos da roda, por exemplo, quando afirmou, para espanto de todos, ao comentar suas andanças em Paris, de onde há pouco retornara:
-O Louvre é um museu de quinquilharias!
Pareceu-me que esta sua frase não passava de mera boutade. Pedro tinha grande senso de humor.
Muito sofreu às voltas com o câncer, que sempre soube enfrentar, bravamente.
Aproximando-se o momento derradeiro, fui visitá-lo, no hospital, onde estava internado há alguns dias. Ele ainda teve ânimo para me dizer, num fio de voz:
-O cerco está se fechando.
E acrescentou, fazendo alusão a um verso de Manuel Bandeira:
-Resta apenas tocar um tango argentino.